No dia 1º de outubro, próximo domingo, serão realizadas as eleições para os Conselhos Tutelares em todo o Brasil. Os órgãos que respondem ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)  funcionam como um importante instrumento de garantia de direitos fundamentais da infância e da juventude. 

Brasileiras e brasileiros com mais de 16 anos e título de eleitor regularizado poderão votar nas mais de 6.100 cidades onde as eleições para os Conselhos Tutelares serão realizadas. Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, 30.500 pessoas poderão ser escolhidas para atuar nessa frente. No entanto, como afirmar que as candidaturas desse  pleito são realmente representativas para a população e estão comprometidas com a defesa de todas as crianças e adolescentes?

Dados oficiais podem responder esse questionamento, porém, nos seus 33 anos de existência, os conselhos tutelares nunca foram objeto de pesquisa de órgãos do governo que informem, por exemplo, raça, religião e identidade de gênero de quem está atuando nesses espaços. Para Douglas Belchior, professor de história, cofundador da Uneafro Brasil e militante do movimento negro, essas informações são importantes porque mostram à população exatamente o perfil de quem está representando a defesa da criança e do adolescente na sua região.

“No Brasil, mais de 56% da população se declara negra, segundo o IBGE. Sabemos que grande parte desse país mora em periferias, outra grande parte em quilombos e territórios indígenas, muitas pessoas com suas diversas profissões, escolaridades, crenças, religiões, identidades de gênero e orientações sexuais. Sabemos do risco de colocarmos quem não vive essas realidades e é avesso a essas temáticas em espaços de proteção da infância. A extrema direita conservadora está aparelhando os conselhos tutelares para que seus representantes trabalhem pela destruição do ECA”.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), legislação que nasceu após o processo de redemocratização do Brasil, em 1988, é taxativo: a legistação aplica-se a “todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença (…) ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem”.

No entanto, a ação recente de conselheiros tutelares ligados a certos grupos religiosos radicais foi na contramão dessa determinação. Em agosto de 2020, uma mãe quase perdeu a guarda da filha de 12 anos a mando do conselho tutelar de Araçatuba, no interior de São Paulo, depois que a menina teve a cabeça raspada de forma consensual em um ritual de iniciação de candomblé. A avó da menina, que é evangélica, foi a responsável pela denúncia, na qual alegou maus-tratos e abuso sexual, tese encampada pelos conselheiros sem comprovação factual. Para a defesa da família, se trata de um caso de intolerância religiosa. Dias depois, a Justiça determinou a restituição da guarda para a mãe.

Um levantamento feito pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo, em 2020, apontou que 53% dos conselheiros que tomaram posse eram ligados a igrejas neopentecostais.

Por Conselhos Tutelares Antirracistas

Para ajudar a população a localizar quais candidaturas estão alinhadas à pauta antirracista, contra a criminalização da pobreza, pelo estado laico e em defesa da democracia, a Uneafro Brasil criou a campanha “Em Defesa do Eca – Por Conselhos Tutelares Antirracistas”. O site da iniciativa recebeu mais de 290 inscrições de pessoas que assumiram o compromisso com a defesa da infância e adolescência negra e periférica e os outros princípios descritos no manifesto da campanha.

“Estamos em ano de eleições para Conselhos Tutelares em todo o Brasil, e diante desse momento tão importante para toda a população – principalmente a periférica – é necessário unir forças e aglutinar os movimentos sociais para combater os setores conservadores e da extrema direita nesse processo, e com foco e centralidade, defender o ECA, combater a criminalização da pobreza, o racismo e demais opressões que afetam a dimensão social da vida das infâncias, adolescências e as famílias periféricas”, diz um trecho.

Candidatas e candidatos de 116 municípios e 20 estados do país fizeram inscrições no formulário divulgado nas redes sociais. Mais de 80% das pessoas inscritas são pretas e pardas e cerca de 20% declararam ser de religião de matriz africana.

Thiago Souza é um dos candidatos que fazem parte da rede “Em Defesa do Eca”. Homem negro, educador social, babalorixá do terreiro Òbá Labi, “nascido em território ancestral negro, menino de pé no chão, de comunidade e favela”, por suas próprias palavras, é candidato ao conselho tutelar pela cidade de Guaratiba-RJ. Sua principal pauta é a defesa da liberdade religiosa e o combate ao racismo. “Se me coloco nessa jornada é porque acredito que não podemos mais ser excluídos e estar distantes das políticas públicas. Desde a minha infância, vejo as mesmas condições de ausência. Nossa comunidade de axé já não aguenta mais ver os direitos das crianças violados e tantas vezes ter o conselho tutelar apoiando essas violações por preconceito racial. Tenho convicção de que a aplicação de condutas antirracistas e democráticas pode fazer com que esse órgão seja mais atuante e efetivamente funcional”, destaca. 

Moradora de Serrinha-BA, cidade que compõe o Território de Identidade do Sisal, no semiárido baiano, Wilma Rodrigues é candidata a conselheira tutelar por seu município e também acredita no caminho do antirracismo como solução. Mulher negra e professora da rede municipal, ela compõe a rede “Em Defesa do ECA” e seu foco está na transformação da prática pedagógica para resgatar a autoestima das crianças. “Tenho como instrumento de pesquisa a Lei 10.639 (lei que determina a inclusão do ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas), com foco maior no público infantil. Atuo dentro dessa lógica do protagonismo para as crianças negras porque, na infância, tive minha história apagada. Na adolescência, descobri minha identidade racial com a ajuda dos movimentos sociais que me chamaram atenção para isso. Desde então, luto para que crianças e adolescentes não sejam privados de seus sonhos, que se descubram pertencentes de suas próprias histórias, que tenham um propósito, que saibam que suas vidas não estão limitadas apenas ao contexto onde estão inseridas. Elas podem muito mais!”, aponta.

Para defender também a juventude LGBTQIAPN+ e tudo que envolve a pauta da diversidade, a advogada especialista em direito das diversidades e educação para os direitos humanos, Ingrid Limeira, é conselheira tutelar candidata à reeleição em Santo André-SP. Integrante da lista da campanha da Uneafro Brasil, ela relata a importância de estar nessas eleições como uma candidata antirracista. “O que faz dessa candidatura urgente é saber a importância de combater o avanço do conservadorismo que tanto desrespeita as famílias plurais. Precisamos estar em defesa permanente do direito de todas as crianças, principalmente aquelas que vivem sob opressões estruturais como o racismo, o racismo religioso e a LGBTfobia”, relata.

A campanha “Em Defesa do Eca – Por Conselhos Tutelares Antirracistas” é uma iniciativa da Uneafro Brasil, em parceria com o Instituto de Referência Negra Peregum, Ação Social Franciscana (Sefras) e Revista Casa Comum. A plataforma emdefesadoeca.org apresenta todas as candidaturas cadastradas e alinhadas às pautas do movimento negro para os Conselhos Tutelares.

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