JORNAL DA UNEAFRO BRASIL
NÚMERO 20 | JUNHO DE 2021
As cores que trazem a esperança na pandemia: Como iniciativas LGBTQIA+ têm amenizado o sofrimento dentro da comunidade
Por: Caio Chagas
Zaila Luz durante gravação do documentário Amálgamar
O documentário ‘Amálgamar – Cidade, corpo, pandemia e o trabalho da Uneafro Brasil’ expõe as realidades vividas por pessoas LGBTQIA+ durante a pandemia. Com uma narrativa dinâmica que mostra as ações que estão sendo feitas pelos coordenadores do Núcleo Laura Vermont e parceiros para amenizar os impactos da ausência de políticas públicas de combate à fome e à miséria nas zonas vulneráveis da capital paulista.
Em um momento de tantas incertezas trazidas pela Covid-19, o Núcleo, localizado no bairro da Luz, região central de São Paulo, começou a utilizar o espaço da sala de aula para armazenar e distribuir cestas básicas, produtos de higiene pessoal e limpeza, além da produção e distribuição de marmitas para pessoas em situação de rua.
Localizado na Casa de Oração do Povo de Rua, o cursinho Laura Vermont é conhecido pela sua atuação com pessoas LGBTQIA+ como um espaço de discussão e acolhimento. Projetos desenvolvidos, como o ‘Politidivas’, que leva qualidade de vida para mulheres travestis e transexuais que vivem na Casa Florescer, empoderam através da educação, com formação contemporânea e histórica, yoga e autocuidado. Trazendo consciência e protagonismo para as alunas.
“A Uneafro, para mim, é uma segunda porta. Antes, eu não tinha expectativa de vida, me disseram que eu não era capaz. E a Uneafro me mostrou que eu era capaz”, relatou Zaila Luz, aluna do Núcleo Virtual para a produção do ‘Amalgamar’.
Moradia e vulnerabilidade
Doações de cestas básicas para a Casa Neon Cunha, em São Bernardo do Campo | Foto: Reprodução Instagram
A Organização Mundial da Saúde recomenda como um dos principais protocolos de contenção do coronavírus o distanciamento social, medida comprovadamente eficaz que dificulta sua contaminação e transmissão. Mas, para parte da população LGBTQIA+, estar em casa por mais tempo significa sofrer violência física, verbal e psicológica da própria família. “Para essa população, os impactos decorrentes da Covid são maiores que os da própria doença”, aponta a presidenta da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), Symmy Larrat.
“A moradia é uma demanda que acompanha a nossa existência, quem nunca ouviu falar de uma LGBTQIA+ que foi expulsa de casa? Tem pessoas que não têm a oportunidade de serem acolhidas em algum lugar e ou ficam em situações precárias ou ficam em situação de rua”, destaca a ativista. Em um comunicado emitido pela Organização das Nações Unidas (ONU) no mês de abril de 2020, é destacada a exacerbação do aumento de violências sofridas por LGBTQIA+ e mulheres por estarem em isolamento social dentro de suas residências.
Symmy Larrat, foi primeira travesti a ocupar a função de coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT, da SDH em 2015 | Foto: Marcello Casal Jr/ Agência Brasil
O Brasil segue na liderança de assassinatos de pessoas LGBTQIA+ em todo o mundo. Segundo um levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia em 2020, foram 237 mortes violentas de LGBTQIA+ no país, com um destaque à população trans, que é maioria nessa triste realidade, com 164 mortes, mais de 70% do total. “Tem algo que chega para nós de maneira muito dolorosa que é a violência. Tivemos um caso de uma menina que saiu do abrigo na região do ABC e optou por dormir na rua e foi queimada viva”, relata Symmy.
Para além das violências sofridas dentro de casa, abrigos públicos que acolhem pessoas em vulnerabilidade social têm dificuldade de tratar de gênero e sexualidade. Pessoas trans relatam abusos de outros abrigados, violências e expulsões que levam essas pessoas a retornarem para a rua. Pensando em mudar essa realidade, na cidade de São Bernardo do Campo e região do ABC, foi criada, em 2018, a Casa Neon Cunha. Organização social que pretende se tornar um espaço de acolhimento a pessoas LGBTQIA+ expulsas de casa e/ou em situação de rua.
A Casa Neon Cunha homenageia em seu nome a ativista independente Neon Cunha que, em sua trajetória de luta, questiona a branquitude e a cisgeneridade. Para atrair a confiança e prestar acolhimento, a casa desenvolve atividades educacionais, feiras de empreendedorismo, bazares e atendimento psicológico para as pessoas LGBTQIA+ mapeadas na região do grande ABC.
Symmy Larrat também atua como Gestora de Projetos da ONG, ela aponta que o espaço começou com a campanha de arrecadação para o custeio e que, para além da dificuldade de obter os recursos, também relatou dificuldade de negociação com o setor imobiliário. “Quando as pessoas do mercado imobiliário descobriram para o que seria a casa, começaram a colocar dificuldades para a compra. Então, para implementar, vimos que seria necessário ter um recurso para longo prazo, para garantir o conforto e local para as pessoas sem qualquer tipo de constrangimento”, contou.
Durante a pandemia, para além da sua arrecadação tradicional para a compra do imóvel, o projeto também tem se dedicado à distribuição de cestas básicas. “No começo da pandemia, recebemos mais doações, neste momento, essa falsa sensação de segurança fez com que elas caíssem, quem doa mais são pessoas comuns e, neste momento, essas pessoas também estão precarizadas”.
“Pensamos em uma estrutura física para atender cerca de 30 pessoas, essas são pessoas que a gente se relaciona e que já estão em situação de rua”, afirma Symmy. “Um outro perfil é o de pessoas que não querem mais ficar em suas casas e que não têm estrutura para se manter, o que leva elas ao risco de situação de rua”. Concluindo, a Gestora de Projetos destacou a importância da luta do movimento LGBTQIA+ por protagonismo de suas ações, “qualquer pessoa pode entender a nossa dor, mas a solução, ela está em nós. A solução nunca vai ser deixar de ser quem a gente é. Estamos nessa condição porque somos assim. Retroceder nunca, render-se jamais!”.
Para contribuir, acesse:
abacashi.com/p/abertura-da-casa-neon-cunha
Educação que transforma
A Casa 1 é um centro de acolhida de jovens LGBTQIA+ expulsos de casa pela família, um centro cultural e uma clínica social no centro da cidade de São Paulo. Dentro do espaço foi desenvolvido o projeto “English to Transform”, que oferece aulas de inglês e espanhol gratuitamente para esse público. A demanda pelo ensino de línguas no espaço se deu pela exigência do mercado de trabalho por buscar profissionais com domínio sobre uma segunda língua. A população trans e travesti especificamente sofre com a marginalização de seus corpos nos espaços em que convive, o que leva à evasão escolar, ausência de oportunidades de emprego e moradia digna.
Em seu dossiê ‘Assassinatos e violência contra travestis e transexuais em 2019’, a ANTRA aponta que 90% dessa população tem a prostituição como a principal fonte de renda, sendo que apenas 4% da população trans feminina se encontra em empregos formais. O mesmo relatório revela o dado assustador de 70% da população trans sem a conclusão do ensino médio. Um levantamento feito pela Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) mostra que estudantes transexuais representam 0,01% dos alunos de Universidades Federais do Brasil.
Juliana Marsi, é professora de espanhol do projeto e afirma a importância da identificação dos alunos com o conteúdo. “Levamos em conta a identidade dessas pessoas na construção desse conteúdo das aulas”. Adaptamos as aulas e o vocabulário as suas realidades, com personagens LGBTQIA+, tudo isso para gerar pertencimento e afeto dessas pessoas. Isso faz total diferença no aprendizado”.
Nascida no Brasil e criada no Líbano, Juliana começou a lecionar voluntariamente como maneira de atuar na comunidade LGBTQIA+, da qual faz parte, através da educação. “Quando eu cheguei aqui no Brasil, eu achava que a questão LGBTQIA+ era bem resolvida, mas quando vivenciei na prática, pude constatar que é um dos países mais racistas, homofóbicos e transfóbicos que já pisei”, analisa.
Alunos do ‘Español para Trans-formar’ durante aula na Casa 1 antes da pandemia | Foto: Acervo pessoal
Para além das aulas, a voluntária relata que a experiência trouxe uma troca de experiências muito significativa entre os estudantes. “Esse foi um espaço em que eu também pude aprender, não só ensinar. Era um espaço onde as pessoas podiam se encontrar, desabafar, exercer a sua sexualidade e identidade de gênero sem medo”, complementando, ela diz que a sensação gerada de pertencimento do grupo fazia a diferença na vida das alunas, “quando alguém não estava bem, as outras participantes logo conversavam e tentavam se solidarizar com aquela dor”.
Com a chegada da pandemia, o projeto se tornou online pela impossibilidade das reuniões presenciais e posteriormente pausado pela dificuldade de acesso dos alunos. “Tentamos montar alguns materiais para serem acompanhados online, mas não conseguimos continuar com as aulas”, explica a professora de língua espanhola. Concluindo, Juliana traz a importância da educação como papel transformador da vida. “Eu passei por momentos de extrema dificuldade, seja da homofobia que sofri dentro de casa, seja da violência que acontecia nos conflitos que presenciei na segunda Guerra do Líbano, em 2006. Por mais que toda a dificuldade exista, nunca deixe de buscar o aprendizado, nem que seja 10 minutos por dia, seja pela internet, livros ou oralmente. Manter a esperança viva transforma”, finaliza.
LGBTQIA+ e fé : Narrativas que transcendem
Por: Caio Chagas
Entre os tambores e a desobediência
Thiffany Odara exercendo sua fé | Foto: Arquivo pessoal
Em meio a avanços e retrocessos nas políticas públicas de inclusão, LGBTQIA+ ainda sofrem com dogmas e tradições impostas pelo fundamentalismo religioso no Brasil. Segundo levantamento feito pela Associação Internacional LGBTI (ILGA), 67 países ainda consideram crime relações consensuais entre pessoas do mesmo sexo biológico. Mesmo com preconceito, pessoas Queer reafirmam a importância de preservar o seu espaço de contato com o sagrado.
Thiffany Odara é Iyalorixá no terreiro Oyá Matamba, localizado na cidade de Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador, na Bahia. O seu contato com o Candomblé se deu através de sua família, que sempre cultivou práticas da religião de matriz africana. “Eu entendo que faço parte de uma filosofia de vida. Ainda que a sociedade diga que não, faço parte de gerações de mulheres que vêm do Candomblé”, pontua.
Os cultos afro-brasileiros são historicamente marginalizados, por toda a relação com o racismo estrutural do país, a introdução de discussões sobre opressões sociais fizeram de alguns terreiros locais com maior flexibilidade e aceitação de LGBTs. “Eu sou iniciada aos 16 anos de idade, o que, para mim, foi um grande desafio, porque eu sempre me identifiquei como mulher trans, e o candomblé é um espaço que não aceitava os corpos trans, então, LGBs eram bem-vindas, quando se tratava de transexuais, não eram aceitas nesses espaços porque há um processo de colonização trazido pelo cristianismo que nega existências trans”, afirma Thiffany.
A heteronormatividade dentro do candomblé sempre foi algo questionável, quando Oxumarê se mostra como uma entidade andrógena abolindo a divisão entre o masculino e o feminino ou, então, bissexual, como é o caso de Logunedê, Orixá caçador que é metade homem e metade mulher ou metade Oxum e metade Erinlé. Para a Yialorixá, exercer sua fé ancestral é um ato político. “Não posso acreditar que Deus fez o homem e a mulher conforme diz uma outra religião que a todo momento negou a existência de pessoas negras, o batismo é a comprovação disso, o negro tinha que ser batizado porque era considerado um ser sem alma. Isso é um apagamento cultural, histórico e ancestral que as populações aborígenes e africanas sofreram durante longos séculos”, critica.
Além de candomblecista, Thiffany é redutora de danos, educadora social e pedagoga. No ano de 2020, publicou o livro ‘Pedagogia da Desobediência: Travestilizando a Educação’, onde faz um diálogo entre o feminismo negro e a luta do movimento trans, propondo uma educação transgressora que propõe quebras de paradigmas ligados à cisgeneridade. “Essa educação que ainda não entendeu que podemos potencializar o senso crítico desses sujeitos. Não posso negar a sociabilidade em um espaço que é voltado para a pluralidade como a escola”.
Sua trajetória na religião, muitas vezes, já lhe rendeu ameaças e inimigos. “Ser uma mulher trans, negra e de terreiro é não dialogar com a colonialidade”, afirma. Concluindo, Thiffany aponta que, para a quebra de uma cadeia de violência contra as religiões de matriz africana, é necessário que, dentro dos espaços, haja inclusão de pessoas trans para a quebra da reprodução de um modelo eurocêntrico. “As pessoas trans não são vistas como pessoas, a gente tá falando de uma sociedade que ao longo de séculos foi dominada por processos coloniais, arquitetônicos, eurocêntricos e cristãos que determinam as conformidades de gênero. Se elas negam a permanência de pessoas trans, elas também estão contribuindo para que esse ódio religioso seja perpetuado”.
Entre a cruz e a militância
Murilo Araujo em seu canal no Youtube | Foto: Divulgação
Quando falamos das identidades LGBTQIA+, vemos com grande frequência o rompimento dessas pessoas com os ditos espaços de segurança, sejam eles locais de trabalho, a família ou a religião. A experiência de fé para o criador de conteúdo, pesquisador, cristão e ativista LGBTQIA+, Murilo Araújo, se deu de maneira diferente. “Eu vivi uma formação religiosa progressista que me fez lidar bem com a minha sexualidade no momento em que eu me descobri gay”. Em sua infância, ele participava das formações dentro da Pastoral da Juventude, “isso, para mim, significou que eu fui apresentado para uma visão de Deus, para uma visão de Jesus, que não são moralistas. Um Jesus que não exclui as pessoas, que é contrário a qualquer forma de injustiça”. Em seu canal no Youtube chamado “Muro Pequeno”, o pesquisador fala sobre questões como negritude, direitos humanos e, principalmente, sobre sua relação com a fé cristã.
A Pastoral da Juventude é uma organização social religiosa ligada à Comissão Episcopal Pastoral para a Juventude da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Sua atuação é baseada na Educação Libertadora, tendo como um dos principais direcionamentos a formação da juventude estudantil, apoiando-se na Teologia da Libertação para desenvolver seus pensamentos e atos, estando em comunhão com toda a Igreja Católica. “A minha experiência é uma exceção quando a gente fala de vivências LGBTs dentro de igrejas cristãs. Eu cresci no interior da Bahia, em uma família pobre, sem contato com discussões de gênero e sexualidade, o espaço em que fui introduzido com debates sobre racismo, movimentos sociais, crítica ao capitalismo, foi no meu grupo de jovens da igreja”, reforça.
Em uma entrevista no ano de 2013, o Papa Francisco falou sobre a questão da homossexualidade. “Se alguém é gay e busca o Senhor e tem boa vontade – quem sou eu para julgar?”, afirmou. O depoimento gerou um descontentamento dos setores ultraconservadores da Igreja Católica que alegaram que a orientação seria “objetivamente desordenada” e representa uma prova. No dia 15 de março deste ano, o Vaticano anunciou que padres e outros ministros não estariam autorizados a abençoar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A diretriz endossada pela aprovação de Francisco. Para Murilo, há um desafio ligado à relação entre religiões cristãs e a questão LGBTQIA+. “Às vezes, você precisa se retirar desse espaço por questão de proteção, essa é a tensão, ou você rompe com a sua sexualidade ou identidade de gênero, ou você rompe com a sua religiosidade. Você tem que renunciar a quem você é para estar dentro daquela fé, mas aquela fé também é parte de quem você é”.
Espaço de disputa de narrativas
As eleições municipais de 2020 foram marcadas pelo aumento de 163% de candidaturas com nomes religiosos. Esse dado foi revelado pela Plataforma Religião e Poder, lançada pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER) em parceria com a Gênero e Número. O relatório aponta que 700 candidaturas voltaram a ter o nome religioso como pastor, bispo, missionário, chegando a um total de 12.579 em todo o país. Entre as principais pautas da chamada “bancada evangélica”, nome dado ao grupo de parlamentares que defendem as pautas ligadas a lideranças cristãs, estão a defesa da moralidade, das famílias e dos valores tradicionais da sociedade ocidental.
Para o criador de conteúdo, é importante que seja feita uma distinção entre o que é dito por essas candidaturas e o que é fundamentalismo. “A gente costuma ter uma visão dos fundamentalistas um pouco folclórica, é preciso dizer que o fundamentalismo religioso é um projeto de poder. Existe um interesse político nesse discurso porque ele é lucrativo politicamente e economicamente”. Para ele, não é apenas pela desinformação, mas sim por saber que esse discurso fundamentalista mobiliza ganhos políticos para quem o adota. “Bolsonaro, Feliciano e João Campos eram políticos com inexpressividade, o que projetou eles nacionalmente foi a polêmica do KIT Gay, e as pautas de sexualidade de gênero. São pessoas que têm altíssimo interesse em mobilizar essas pautas morais, porque essas pautas têm garantido a sua plataforma visibilidade e ganho econômico”, finaliza Murilo.
Mulheres em Luta:
Jeanne Vittor
Entrevista: Caio Chagas
“Jee”, como é conhecida pelos alunos, é professora de Geografia do Brasil no Núcleo Virtual da Uneafro Brasil e estudante de Bacharel em Geografia na Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. Atua como ativista e pesquisadora do racismo ambiental e é diretora de permanência do Diretório Central dos e das Estudantes da UFGD.
Como você conheceu a Uneafro?
Jee:
Meu processo de introdução na Uneafro se deu através do cursinho Mabel Assis, em Guarulhos, pelo coordenador Maurício D’ Melo. E através das reuniões com o cursinho, eu soube do Núcleo Virtual e vi que era um espaço onde eu poderia desenvolver a minha vontade de atuar na educação popular, mesmo à distância, pois, hoje, vivo no Centro-Oeste. Comecei a atuar no início de 2021.
Como está sendo a sua experiência?
Jee: Para mim, está sendo uma experiência muito gostosa de compartilhar e ser construída, essa relação com os e as alunas é muito acolhedora, sou uma das professoras preferidas deles.
Acredito que essa vontade que tenho vem da minha relação de recém-saída de um cursinho popular, isso, para mim, ainda é muito presente, então, tudo o que eu passei naquela época, hoje, eu tento ensinar a eles. O Núcleo Virtual me deu uma revigorada durante a pandemia.
Como está sendo para você conciliar os estudos, pesquisa acadêmica e aulas no Núcleo?
Jee: Eu tenho visto de maneira positiva, a qualidade das aulas sempre coloco em primeiro lugar. Eu aprendo na Universidade e já encaminho para os e as alunas. Se eu ainda não tive a matéria que vou ensinar, eu vou atrás para aprender e, nesse processo, também me preparo para a Universidade.
O ensino remoto da minha própria graduação, que são 7 disciplinas, e a preparação para o COPENE ocupam uma parte do tempo, mas sempre consigo desenvolver as aulas nos finais de semana.
Acompanho bem de perto a vida dos estudantes, e isso tem sido prioridade para mim por entender a importância de outras Jeannes que vão sair da Uneafro estarem nesse lugar que eu estou hoje.
Qual você acha que é o principal impacto do racismo ambiental na vida da população negra?
Jee: Eu vejo duas questões muito importantes que se relacionam com o racismo ambiental na pandemia, são elas: o desmatamento e a ausência de saneamento básico. O racismo ambiental é uma acentuação do racismo estrutural que a gente já conhece. Então, analisamos o processo de injustiças ambientais e tratamos elas sob uma ótica racializada. Prefiro ainda usar o termo “Racismo Socioambiental”, por também envolver as relações sociais que se perpetuam nessa relação com os espaços.
Desde o ano passado, a gente tem visto o desmatamento que afeta diretamente a vida de pessoas que sobrevivem dos biomas, tanto na questão da moradia, com a desapropriação dos espaços, principalmente dos povos pretos, das periferias, dos quilombos, dos assentamentos; quanto na questão da sua garantia de alimento e renda. Ao serem afastadas, expulsas ou perderem suas terras, essas pessoas não têm, muitas vezes, como sobreviver.
A segunda questão, que é a do acesso ao saneamento, é uma das principais questões do racismo ambiental. Com a chegada da pandemia, a gente vê de maneira ainda mais preocupante esse sofrimento. Um dos principais cuidados que a gente tem que ter na pandemia é o da higiene, que depende do acesso direto à água. Água que usamos para comer, para lavar as mãos, lavar as roupas, as máscaras, e a gente está falando de uma população que ainda não tem acesso a isso. Ainda hoje, na cidade de São Paulo, existem pessoas que não têm acesso à água potável e à rede de esgoto. Se eu for analisar a cor dessas pessoas, posso te garantir que a maioria são pessoas pretas.
Enquanto pesquisadora acadêmica, como você observa o desmonte feito no Ensino Superior?
Jee: O impacto é semelhante ao racismo ambiental, esse desgoverno fala de descontingenciamento, mas todo mundo sabe que são cortes. Em 2016, a bolsa de pesquisa oferecida era de R$ 400 e, hoje, em 2021, essa bolsa ainda continua sendo de R$ 400. O que me desmotiva é a falta de credibilidade e investimento na ciência. A questão das bolsas é muito complicada, eu não tenho remuneração nenhuma e luto para me manter nela porque sei do impacto que a minha graduação tem enquanto retorno para a sociedade.
Quando a gente pega os 3 pilares da Educação Superior: o ensino, a extensão e a pesquisa, eu cumpro todos esses quesitos. Quando analiso a minha graduação em relação ao ensino, eu estou na cobrança da qualidade do que é ofertado e do cumprimento do calendário na minha Universidade; já na extensão, o retorno que eu entrego para a sociedade é o de passar para frente todos os meus conhecimentos sobre racismo ambiental, ensino de maneira acessível, menos acadêmica, desenvolvo aulas através de lives, rodas de conversa; e, por fim, na realização da pesquisa, que é tão importante, mas que é a parte que mais me desgasta, é algo que tem muito valor para o país, porém, não tenho investimento de bolsas em minha pesquisa e, durante muito tempo, fiquei sem orientação nenhuma. Esse é o cenário de lutar em meio às adversidades e, ainda sim, querer dar um retorno para a sociedade.
Quais são os outros impactos da ausência de investimento em pesquisa?
Jee: Mesmo com uma pandemia, uma grave crise de saúde, as pessoas não conseguem enxergar a necessidade de investimento em pesquisa. Não só sobre as causas, mas sobre a prevenção também. Investir em pesquisa é investir em nossas cidades, é investir no planejamento urbano, na melhora da qualidade de vida. São essas coisas que vão proporcionar cada vez mais trabalhos que possam contribuir com a sociedade.
Como a sua identidade influencia nesse processo de troca de aprendizados?
Jee: Um dos momentos mais especiais desse processo de aprendizado eu vivenciei aqui na Uneafro quando um aluno que até então utilizava o seu nome civil feminino, mas que conversava comigo sobre questões de transição. Então, essa interação veio através do meio de um processo de aprendizagem, isso, para mim, é muito valoroso. Se ele se vê em mim, em um espaço de educação, como professora, é algo muito importante. Se eu não puder ter essa representatividade na minha universidade, que eu me torne ela. E esse aluno me mostrou muito dessa representatividade que eu sempre busquei nesse processo.
Qual recado você daria para os seus alunos que estão passando por dificuldade nos estudos nesse momento?
Jee: Uma pessoa preta e periférica nunca entra na universidade sozinha, ela leva consigo a história de tantas outras pessoas junto. Os meus alunos e alunas vão levar com eles suas histórias e suas construções, vocês não estão sozinhas e sozinhos. O corpo de vocês é uma extensão de todo mundo que não conseguiu chegar até lá.
LGBTQIA+ pelo “Fora, Bolsonaro: Nem de bala, nem de fome, nem de Covid!”
Por: Caio Chagas
O dia 16 de junho ficou marcado pela data que o Brasil atingiu a triste marca de 500 mil mortos e também pelas centenas de milhares de pessoas que ocuparam as ruas em todas as capitais para gritar “Fora, Bolsonaro”. Na cidade de São Paulo, a concentração na Avenida Paulista ocupou nove quarteirões das duas faixas da avenida. Em meio à lentidão da vacinação e do aumento das desigualdades, a população negra e LGBTQIA+ segue morrendo de um outro vírus, o da necropolítica. Em sua fala durante o ato, a vereadora Erika Hilton destacou a importância das mobilizações organizadas pela garantia da vida. “O governo Bolsonaro representa a política das capitanias hereditárias, a política colonialista, a política de morte, mas o brasileiro é um povo de vida, um povo de construção. Quem vai derrubar esse governo é aquilo que eles mais odeiam, as mulheres, a população negra e as LGBTQIA+”, concluiu.
Uma pesquisa feita pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), com base nos dados do SUS entre 2015 e 2017, mostram 24.564 notificações registradas de agressão contra a população LGBTQIA+ no período, o que expõe uma média de mais de 22 notificações diárias, ou seja, quase a cada hora. O país também segue como líder mundial em assassinatos a pessoas trans por 13 anos consecutivos. Segundo o relatório da ANTRA, em 2020, foram contabilizados 175 assassinatos de pessoas trans e travestis. Para Débora Dias, covereadora da mandata Quilombo Periférico, se posicionar contra Bolsonaro e lutar pela existência dos grupos minorizados “Ser LGBTQIA+ e se posicionar contra o governo Bolsonaro é diretamente defender a nossa vida, o nosso direito de existir, o bem viver e poder livremente vivenciar as nossas subjetividades”.
Débora Dias durante as manifestações pelo “Fora, Bolsonaro” | Foto: Caio Chagas
Débora alerta que há um avanço das pautas conservadoras também no âmbito municipal, como a PL 813/2019 do vereador Rinaldi Digilio (PSL) que inclui no calendário municipal a Semana ‘Escolhi Esperar’, sugerindo a abstinência sexual como política pública de prevenção à gravidez precoce nas escolas. “Essa proposta está alinhada com o Ministério de Damares Alves, uma política que diz que protege a nossa juventude, mas é uma justificativa para controlar os nossos corpos”, finaliza.
Os ataques políticos contra a população também se deram na política estadual, reforça Lúcia Castro, ativista na luta pelos Direitos Humanos, LGBTQIA+, Cultura, Mulheres e Movimento Negro. Para ela, a comunidade LGBTQIA+ tem entendido que se não ocupar esses espaços vai continuar sofrendo violências e retrocessos, é um número muito ínfimo com relação à paridade representativa que a sociedade tem”.
Fazendo alusão ao Projeto de Lei 504/2020, criado pela deputada estadual Marta Costa (PSD) – que propunha a proibição de publicidade de materiais que contenham alusão a orientações sexuais e a movimentos de diversidade sexual relacionados a crianças e adolescentes, alegando que a população LGBTQIA+ poderia influenciar negativamente o comportamento da juventude – Lúcia reitera, “e aí a gente vê Janaína Paschoal (PSL) endossando essa proposta para aprovação com emendas e verbas. Esse exemplo põe em alerta a nossa representação em espaços já consolidados”.
O número de candidatos LGBTQIA+ na eleição de 2020 foi o maior já registrado, com 502 postulantes, dos quais 83 foram eleitos, segundo levantamento do movimento #VoteLGBT. A retirada de pauta do projeto se deu após Erica Malunguinho (PSOL) apresentar uma emenda ao texto, para que seja vedada a alusão de materiais que façam alusão a drogas, sexo e violências explícitas, e não a presença de LGBTQIA+. “Em todos os partidos, independente da ideologia, colocam a nossa identidade LGBTQIA+ com o sentido de preencher cotas e, nesse sentido, não potencializam financeiramente para que possamos competir em pé de igualdade com os caciques dos partidos”, completou Castro.
Lúcia Castro, militante LGBTQIA+, de direitos humanos e por igualdade racial | Foto: Reprodução Instagram
Para ela, a ausência de especificações de identidade de gênero e a orientação sexual no CENSO levam a uma vulnerabilidade maior na comunidade Queer. “Se a gente não consegue ter um recorte da porcentagem da população que é gay, lésbica, bissexual, não binárie, intersexo ou transexual, como serão feitas políticas públicas para essa população?”, a ausência de dados científicos é uma agenda do governo Bolsonaro, aponta. “A gente sabe porque Bolsonaro não deixou orçamento para o CENSO. A sociedade é marginalizada pelo Presidente da República, ele destila ódio contra a maioria da população. Ele se elegeu com o ódio direto para os corpos negros, para os corpos LGBTs e para os corpos das mulheres”.
Lúcia expõe a realidade de preconceitos dentro da própria comunidade LGBTQIA+. “A gente vê comunidades com preconceitos com relação ao racismo, não reconhecendo pessoas negras nesses processos da sociedade, e fazendo piadas racistas. Precisamos cruzar essas informações e formar para dentro da comunidade também”, da mesma forma, ela aponta que “uma família negra vai acolher os seus quando sofrerem racismo, somos unidos pela doloridade causada pelo racismo, mas quando a orientação desse indivíduo é descoberta, ele vai para a rua”.
Finalizando, a ativista reforçou que a transformação virá da conscientização. “As pessoas naturalizaram que bater em homossexual é normal, quem elegeu Bolsonaro é quem colocou as pessoas LGBTs para fora de casa devido a sua orientação, é quem impediu que pessoas trans ou travestis participassem da ceia de Natal. Se a gente quer falar em derrotar Bolsonaro, a gente tem que conscientizar essas pessoas sobre o quanto isso é errado”.
Núcleo Ambiental
A Uneafro Brasil está dando os primeiros passos para a criação de hortas urbanas no Núcleo Quilombaque, localizado na zona noroeste de São Paulo, no Núcleo XI de Agosto, em Poá, e no Núcleo Marielle Franco, em São Bernardo. Incentivando o acesso à terra, alimentação orgânica e ervas medicinais.
No dia 2 de junho, a Uneafro Brasil esteve nas ruas para gritar “Justiça por Miguel Otávio” | Fotos: Thiago Fernandes
#19JFORABOLSONARO!
Nossos e nossas militantes, professores, alunes e coordenadores de cursinhos populares também foram às ruas neste “Fora, Bolsonaro!”
Em memória às 500 mil vidas perdidas por Covid-19, entre elas, nossos irmãos e irmãs que defendiam a bandeira da educação popular.
Conhecimento é poder. #uneafroresiste
Poesia: ainda ecoando os tambores
Você é professor ou aluno da UNEafro, é da quebrada, curte e faz arte negra e periférica? Dê um salve!
Mande um e-mail para [email protected] e mande seu trabalho aqui para toda a nossa comunidade ver!
Núcleo Virtual
Para tentar atender nossos alunos durante a pandemia, a UNEafro está lançando um Núcleo Virtual que deve começar suas atividades na primeira semana de junho.
Professores de diversos núcleos se juntaram para produzir material e ajudar os alunos nas atividades em um espaço virtual.
Enquanto seguimos tentando adiar o ENEM, fazemos também o possível para preparar os alunos de ensino médio nas periferias.
Colabore Conosco
A principal missão da UNEafro é tirar o corpo negro e pobre da linha do tiro, do contingente encarcerado pelo estado, da fila do hospital e dos números das estatísticas da violência. Para isso, desenvolve ações que buscam oferecer oportunidades de estudo e trabalho em comunidades negras e pobres.
Você pode fazer parte e ser responsável por esse importante trabalho. Doe!
Banco do Brasil
Agência: 4054-1 | CC: 285.078-8
Em nome da Associação Franciscana DDFP
CNPJ: 11.140.583/0001-72
Expediente: Edição: Caio Chagas, Jéssica Ferreira | Diagramação: Gabriela Bosshard | Revisão: Renata Toni | Contato: [email protected]