Há mais de 30 anos o número 1.610 da rua Jurubatuba, no Centro de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, é a sede do projeto Meninos e Meninas de Rua. A iniciativa histórica atua na luta pelos direitos de crianças e adolescentes e desenvolve atividades que, atualmente, atendem cerca de 1 mil  pessoas de forma direta e outras tantas indiretamente. Desde 2019, o projeto vive a incerteza se permanecerá no espaço que ocupa na região central. É que a gestão de Orlando Morando (PSDB) ingressou com uma ação de despejo pedindo de volta o imóvel que foi cedido pela prefeitura à ONG em 1989 — cessão que foi formalizada por um decreto de 1992.

O julgamento de um recurso no dia 26 deste mês vai ditar os próximos passos da ação. O Tribunal de Justiça vai avaliar se acata o pedido da Defensoria Pública que pede a anulação do processo por alegar que a gestão de Morando não age legalmente neste caso.

“Aqui é um centro popular de direitos humanos”, defende Markinhus Souza, 51 anos, coordenador-geral do Projeto Meninos e Meninas de Rua. Ele argumenta que o pedido de despejo não considera a importância do projeto para a população do município. “A questão que fica é: São Bernardo é uma cidade antifacista? Se ela é, como pode uma prefeitura manter a ordem junto ao Tribunal de Justiça para despejar uma entidade que é reconhecida, promove ações antirracistas com criança, adolescente com famílias e a comunidade?” questiona o coordenador.

O Projeto Meninos e Meninas de Rua existe desde 1983 e, entre realizações importantes, participou da Comissão Nacional Criança e Constituinte (CNCC), de onde surgiu o artigo 227 da Constituição Federal, que trata do dever do Estado e da sociedade em garantir proteção para crianças e adolescentes.

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, diz o texto.

Esses deveres postulados são também colocados em prática pelo Meninos e Meninas de Rua. Entre as atividades desenvolvidas pelo projeto estão curso de programação, natação, capoeira, aula de percussão, sarau e oficina de futebol de rua. A última é comandada por Leriane Aparecida Manoel, 36 anos, mais conhecida como Lika. Com a vida atravessada pelo projeto desde os 8 anos, ela conta que a entidade  mudou sua trajetória. “Foi essencial para mim esse primeiro contato com o som e a música na aula de percussão. Foi um divisor de águas que mudou completamente a minha vida”, relata Lika sobre as aulas que fez ainda na infância.

Além das aulas de percussão, Lika também participou de um cursinho pré-vestibular e grupos que debatiam políticas públicas para crianças e adolescentes. “Foi ali que me entendi como pessoa política”, diz ela sobre crescer imersa nas atividades do Meninos e Meninas.

Hoje, comandando a turma de futebol de rua do projeto, que conta com cerca de 30 crianças e adolescentes de seis a 17 anos, ela vê como devastador um possível despejo. “O projeto é essencial nesse âmbito cultural, de lazer e na área da infância da juventude de luta. Essa importância é muito grande para nós aqui de São Bernardo e acaba sendo referência para todo o estado de São Paulo”, comenta Lika.

Ação começou em 2019

O processo de despejo foi determinado pela juíza Ida Inês Del Cid em dezembro de 2019 após ação ingressada pela gestão de Morando, que no ano anterior tinha revogado o decreto que cedia o uso ao projeto.

A prefeitura alegou em um primeiro momento que usaria o imóvel para a implantação de um Centro Dia do Idoso. Ao longo do processo, a gestão chegou a mudar a finalidade pretendida dizendo que faria a ampliação de um Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop), que já existia em outro endereço.  Contudo, não houve previsão para manutenção do atendimento para crianças e adolescentes como contrapartida ao despejo do Meninos e Meninas de Rua.

Em julho de 2020, em meio à pandemia de Covid-19, a juíza Ida Inês Del Cid decidiu que o despejo ocorresse apenas quando a situação sanitária fosse normalizada. Neste período, o projeto seguiu atuando de forma adaptada. Uma delas foi a entrega de cestas básicas aos que tiveram a renda prejudicada. “Nós entregamos em torno de 350 cestas básicas mensais. Isso aí durante todo o ano”, comenta Markinhus, coordenador do projeto.

A suspensão foi mantida pela magistrada em abril de 2021, mas em junho a prefeitura pediu que houvesse o despejo já naquele período, alegando que o imóvel estaria fechado, o que é rebatido pelo advogado que defende o projeto, Syro Boccanera, 40 anos.

”O projeto em nenhum momento parou de receber pessoas, em nenhum momento fechou as suas portas, em nenhum momento deixou de cumprir a sua função social”, contesta Boccanera.

No entanto, em setembro daquele ano, a juíza acatou a versão da prefeitura e determinou que a desocupação ocorresse em 15 dias. O fim do prazo coincidiu com o Dia das Crianças, o que foi visto com desconfiança pela gestão do projeto. “Nós não achamos que é coincidência”, pontua Markinhus.

A Defensoria Pública entrou então com recurso de apelação pedindo que a sentença de despejo fosse anulada, justificando não haver pela prefeitura plano claro de destinação para o imóvel após uma possível desocupação e como será feito o atendimento aos que hoje são assistidos pelo projeto.

O defensor público Daniel Palotti Secco, 37 anos, que atua no caso, avalia que a prefeitura age de forma inavertida e ilegal. “O movimento não está ocupando ilegalmente o imóvel, ele foi cedido pela prefeitura legalmente para que esses atendimentos fossem prestados”, comenta.

Secco defende que a falta de comprovação da futura destinação fere o princípio de proibição de retrocesso. “A partir do momento que a prefeitura efetivamente cedeu o imóvel e que há um atendimento sendo realizado, ela não pode simplesmente fechar, voltar e deixar desatendida essa população. O que os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário obrigam é a sempre avançar em relação ao atendimento. Nunca retroceder. Além de tudo a prefeitura violaria esse princípio também”, completa o defensor.

Tentativa de negociação

O advogado Syro Boccanera diz que houve tentativas de acordo com a prefeitura desde que o pedido de despejo foi apresentado. Boccanera diz que foram levadas provas da realização de atividades e também destacada sua importância. Ele lembra que também foi feita uma mobilização social em 2021 para impedir a desocupação.

Nomes como o rapper Emicida, Daniela Mercury e Chico Buarque gravaram vídeos apoiando o projeto Meninos e Meninas. “Eu vim aqui oferecer meu apoio ao projeto Meninos e Meninas de Rua, de São Bernardo do Campo, que está ameaçado de despejo depois de 33 anos de serviços no sentido de formação cultural, social e de cidadania de crianças e adolescentes”, disse Buarque em vídeo divulgado nas redes sociais da ONG.

Boccanera conta que por um momento houve avanço no sentido de acordo e que outro imóvel chegou a ser oferecido pela prefeitura para sediar o projeto. Contudo, segundo o advogado, o local ficava em uma área alagável e não atendia as necessidades do projeto.

A prefeitura de São Bernardo foi questionada pela reportagem da Ponte sobre o possível acordo comentado por Boccanera, mas não respondeu. Durante a ação judicial, a gestão de Morando mencionou a que entidade está irregular junto ao Tribunal de Contas por um processo de 2020.

Uma auditoria considerou irregular a prestação de contas de um convênio feito com a agora extinta Fundação Criança e São Bernardo do Campo no período de 2008 e 2011. A decisão pediu que a Meninos e Meninas devolvesse R$ 96.728,42, com correção monetária. Segundo Boccanera a situação ainda não foi resolvida, mas está nas tratativas. A expectativa é que haja uma decisão favorável na audiência do dia 26.

“Nós entendemos que juridicamente precisamos trabalhar pela manutenção do projeto porque as pessoas utilizam aquele projeto diariamente. É um projeto de extrema importância e relevância para o município de São Bernardo do Campo”, comenta.

Prefeitura é acusada de racismo institucional

A ação de despejo foi incluída em uma denúncia levada ao Tribunal de Justiça  acusando de racismo institucional a prefeitura de São Bernardo do Campo. O documento foi protocolado em maio do ano passado por movimentos sociais como o Uneafro Brasil, Movimento Negro Unificado (MNU), o Instituto de Referência Negra Peregum e o próprio Projeto Meninos e Meninas de Rua.

Além da desocupação, a denúncia também inclui observações como a retirada de aulas de capoeira e percussão do currículo escolar e o fechamento do Centro Livre de Artes Cênicas (Clac).

José Adão De Oliveira, 67 anos, co-fundador do MNU, aponta que a questão do despejo vai além do espaço físico e que a prefeitura deveria investir no projeto ou invés de miná-lo.

“Essa decisão que ele está tomando é uma decisão que só serve aos interesses, aos olhares, que ele tem e não é uma questão da gestão pública de benefícios. Isso é um ponto, outro é a longevidade do projeto, que é referência em nível nacional e internacional e é um valor para o município, um valor para os cidadãos, mas no olhar do prefeito isso não vale nada”, afirma.

Adão aponta ainda que, ao mesmo tempo que toma esse tipo de medida, a prefeitura de São Bernardo promove propaganda contra o racismo. Ele se refere à campanha “Cartão vermelho para o racismo”, lançada na esteira dos ataques sofridos pelo jogador de futebol Vini Jr na Espanha.

A lei foi criada no município do ABC para punir atos racistas e de injúria racial em partidas esportivas no município. Há previsão de multa de R$ 5 mil para pessoas físicas e de R$ 15 mil para CNPJ e o valor, segundo a legislação, será investido em “ações educativas de enfrentamento ao racismo”.

“A questão não é só a propaganda, mas o que realmente está sendo feito para os 33% da população [autodeclarada negra]. O que está sendo feito para os brancos está sendo feito para os demais?”, completa Adão.

O Forúm Antiracista de São Bernardo também denunciou a gestão de Morando à Organização das Nações Unidas (ONU) em maio de deste ano por racismo institucional. Entre os pontos levados à entidade internacional está o fato do Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, ter sido deixado de lado pela prefeitura. Em 2021, por exemplo, naquela data, o Paço Municipal recebeu uma Oktoberfest (evento ligado à cultura alemã). No ano seguinte, o festival tradicional nipônico Bon Odori foi celebrado com apoio da administração pública em um parque do município.

Outro lado

Ponte solicitou entrevista com o prefeito Orlando Morando e com o Procurador-Geral de São Bernardo do Campo, Luiz Mário P. de Souza Gomes, mas não houve retorno ao pedido.

Com respostas parciais aos questionamentos da Ponte, a assessoria de comunicação da prefeitura se manifestou em nota reafirmando que o Meninos e Meninas “não vem desenvolvendo atividades ordinárias há anos”, o que já foi rebatido pela entidade e pela Defensoria Pública. Veja a nota completa abaixo:

A Prefeitura de São Bernardo informa que a questão relacionada ao projeto “Meninos e Meninas de Rua” é objeto de ação judicial em curso. A entidade ocupa área pública e não vem desenvolvendo atividades ordinárias há anos, razão pela qual o município requisitou o espaço para melhor utilização com outros projetos de relevância social. Além disso, a entidade é apontada como inidônea pelo TCE/SP e, desta forma, se encontra impedida de receber qualquer espécie de repasse de entes públicos no Estado de São Paulo, incluindo a concessão de espaços públicos.

Sobre a denúncia na ONU, a Prefeitura esclarece que a UNEAFRO já havia acionado o município em ocasiões anteriores, em que houve a demonstração de que a Administração vem atendendo com plenitude as políticas de inclusão de minorias. Infelizmente entidades como a UNEAFRO vem se valendo de pautas legítimas, como o combate ao racismo estrutural e ao racismo institucional, para servir de palanque político à interesses de terceiros que, cientes de que estão à margem da lei nos seus pleitos, tentam apelar para argumentos extralegais.

Reportagem da Ponte Jornalismo
Foto de Thiago Fernandes.

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