Necessidade de alimentar a família e o medo da contaminação colocam essas profissionais entre a cruz e a espada

Por: Luiz Soares

A semana que passou marcou duas datas extremamente importantes para a luta por direitos. Na terça (27), foi celebrado o Dia da Empregada Doméstica, criado para homenagear Zita de Lucca, trabalhadora doméstica que morreu nessa data, em 1272, na Itália, declarada padroeira da categoria. E hoje (1º de maio), o Dia do Trabalhador, celebrado desde 1889 para homenagear integrantes de grupos sindicais dos Estados Unidos que realizaram uma greve nesse mesmo dia, em 1886, lutando, entre outras coisas, pela jornada de trabalho de oito horas, seguida hoje em quase todas as partes do mundo.

Sendo assim, essas datas são de reivindicação – apesar de o feriado dar caráter festivo ao 1º de maio – e chamam a atenção para a necessidade de valorização e respeito de todas as classes profissionais, como aqui representadas pelas trabalhadoras domésticas. Historicamente discriminadas e desrespeitadas, essas profissionais se viram ainda mais divididas entre o medo do desemprego e, consequentemente, da fome e da contaminação pelo novo coronavírus. Como canta Emicida na música Ordem Natural das Coisas, são os e as profissionais, como a dona Maria, que pegam o ônibus antes mesmo do sol nascer.

Com mais de 400 mil mortos pela Covid-19 no Brasil – número também alcançado pelos Estados Unidos e distante das 215 mil mortes no México, o terceiro colocado nesse ingrato ranking – a semana foi marcada pela instalação da CPI da Covid, iniciada na terça (27). 

Não haveria data tão emblemática para investigar os atos ou a falta deles por parte do governo federal desde março do ano passado, uma vez que uma das primeiras vítimas fatais da doença foi Cleonice Gonçalves, trabalhadora doméstica do Rio de Janeiro, contaminada por sua empregadora que havia viajado para a Itália. Mas será que os integrantes da CPI vão ouvi-las e pensar nelas?  

Além das empregadas domésticas, podemos citar diversas classes trabalhadoras que, durante a pandemia, têm se arriscado para garantir o emprego e fugir da fome. Podemos citar aqui porteiros, motoristas, entregadores e muitos outros. E é por conta desses profissionais que saudamos todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores brasileiros.

A realidade das trabalhadoras domésticas

O emprego doméstico é regido pela Lei Complementar 150/2015 – além da Reforma Trabalhista de 2017 que também impactou a classe. Apesar de possuírem diversos direitos garantidos por lei, na prática, a realidade desses e dessas profissionais é bem diferente, como ficou ainda mais evidente durante a pandemia de Covid-19. 

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1,5 milhão de postos de trabalho doméstico foram perdidos entre setembro e novembro de 2020. Segundo a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), hoje, o Brasil conta com mais de 7 milhões de trabalhadores nessa área. Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam que são, em sua maioria, mulheres (93%) negras (63%). Apenas 42% dessas(es) trabalhadoras(es) contribuem para a previdência social e só 32% possuem carteira de trabalho assinada.

Como disse a presidente da Fenatrad, Luiza Batista, em entrevista ao portal Universa, no Dia da Empregada Doméstica, “Não queremos ser da família”. Na entrevista, ela fala sobre a “relação de servidão” entre trabalhadoras e empregadores que perdura por décadas e rebate a ideia de que elas são “quase da família”: “Não somos e não queremos ser. Nós temos a nossa família. O que queremos é que nossos direitos sejam respeitados”. 

Veja a entrevista completa no site da Fenatrad

Discriminação e violação de direitos 

Muitas dessas pessoas se sentiram obrigadas – em alguns casos, de fato, foram obrigadas pelos próprios empregadores –, a continuarem trabalhando, mesmo que isso significasse se colocar em ainda mais risco, uma vez que precisam de transporte público para chegar em seu trabalho. Fora aquelas que são mantidas 24 horas no trabalho, em uma espécie de quarentena, mas que nada mais é que um cerceamento à liberdade. 

Ainda segundo a Fenatrad, em março de 2020, o Ministério Público do Trabalho (MPT) orientou os empregadores a dispensarem as trabalhadoras com remuneração e para as funções tidas como essenciais (cuidadoras de idosos e pessoas com deficiência, babás e prestadoras de serviços para os profissionais atuantes na linha de frente) que fornecessem EPIs, transporte particular e horários especiais de trabalho.

Ao contrário disso, o que se viu Brasil afora foram casos de violação de direitos, ainda mais discriminação e violência, como o que aconteceu com Mirtes Santana. Em junho de 2020, quando a pandemia ainda estava com altos índices de disseminação, ela foi obrigada a continuar indo ao trabalho e, na impossibilidade de ter com quem deixar seu filho Miguel, de cinco anos, o levou para o trabalho. Ao sair para desempenhar a “tarefa” de levar o cachorro de Sari Corte Real para passear, deixou seu filho com a empregadora, que foi incapaz de cuidar do menino. Após pegar o elevador para procurar a mãe, o menino foi até o nono andar do prédio de onde caiu. O que restou para a mãe foi ver seu filho no térreo e pedir ajuda na tentativa de salvá-lo, conforme as imagens de segurança mostraram. Após quase um ano, Sari responde pelo processo em liberdade.

Vale destacar que, nesse caso, a família empregadora era do prefeito da cidade de Tamandaré, Sérgio Hacker e, portanto, de alguém que poderia arcar com os custos para manter sua funcionária em casa.  

Clique aqui e veja o vídeo da Fenatrad sobre o Dia da Empregada Doméstica

Além disso, ao contrário do que já foi muito visto nas redes sociais, não são as empregadas domésticas as responsáveis pela disseminação do novo coronavírus ou de levar o vírus para as casas de seus empregadores. 

Não se pode esquecer que o novo coronavírus foi trazido para o Brasil por aqueles que viajaram para o exterior e, portanto, não se trata de trabalhadores domésticos. 

Fome e auxílio emergencial 

Considerada como a terceira categoria de trabalhadoras do Brasil, muitas dessas profissionais não conseguiram acessar o auxílio emergencial. E mesmo aquelas que conseguiram terão dificuldade em fazer esse dinheiro ajudar a levar comida para a mesa. 

Ainda segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede PENSSAN, mais da metade da população e dos lares brasileiros enfrentaram algum grau de fome nos últimos meses de 2020. Além disso, pessoas pretas ou pardas passam fome em 10,7% dos domicílios.  

Considerando os dados de desemprego e fome no Brasil, é possível imaginar quantas pessoas passam por essas situações no país. 

Portanto, é fundamental que quem puder ajude campanhas de arrecadação de recursos para famílias mais vulneráveis, como a Tem gente com Fome, fortaleça o sindicato de trabalhadoras domésticas de sua cidade, mantenha o salário ou diário de quem trabalha na sua casa. 

Como menciona a campanha da Fenatrad, “Cuide de quem cuida de você”. “É uma questão de saúde pública e de solidariedade. Quarentena não pode ser um privilégio”.

É por comida, por vacina e pela vida. É importante que a sociedade se mantenha mobilizada pelo auxílio de R$ 600 até o fim da pandemia. Por vacina para todas e todos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

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