Produzido pelo: GIFE
Recentemente, viralizou nas redes sociais uma foto simples, mas que expressa a realidade de pessoas negras. Na imagem, um homem negro pratica corrida nas ruas dos Estados Unidos com uma frase escrita nas costas: “Não atire, é apenas cardio”, fazendo referência à prática de exercícios.
No Brasil, o cenário é desolador: a morte da designer de interiores Kathlen Romeu e a chacina que deixou 28 moradores mortos em uma violenta operação policial na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, são apenas dois dos inúmeros casos recentes que atestam o que organizações do movimento negro chamam de genocídio da população negra.
De acordo com o Atlas da Violência 2020, pretos e pardos representaram, em 2018, 75,7% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios de 37,8% por 100 mil habitantes, ao passo que, para pessoas não negras – brancas, amarelas e indígenas – a taxa foi de 13,9%. Em direções opostas, entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um aumento de 11,5% para pessoas negras, enquanto para os não negros houve uma diminuição de 12,9%.
De acordo com o relatório A Cor da Violência Policial: A Bala Não Erra o Alvo, que analisou dados de cinco estados que compõem a Rede de Observatórios da Segurança (Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo), das 1.814 pessoas mortas pela polícia em 2019 no Rio de Janeiro, 86% eram negras. Na Bahia, o índice chegou a 96,9%.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 mostra que das 6.416 mortes em intervenções policiais, 78,9% eram pessoas negras, 76,2% eram jovens e 98,4% do sexo masculino, o que reforça a narrativa do extermínio de jovens, homens e negros. Além disso, o estudo também aponta que a discriminação em razão da cor da pele também está presente entre a própria força policial, uma vez que policiais negros morrem mais do que brancos (62,7% contra 34,5%, respectivamente).
Em entrevista ao redeGIFE, Douglas Belchior, professor de história, cofundador da Uneafro Brasil e integrante da Coalizão Negra por Direitos, explica o protagonismo de organizações do movimento negro, que há décadas lutam pela garantia de direitos e denunciam o racismo praticado diariamente na sociedade brasileira.
redeGIFE: De que forma o racismo estrutural e a violação dos direitos da população negra estão relacionados com o que a Coalizão Negra chama de política de morte do Estado?
Douglas Belchior: O conceito de genocídio foi forjado na Segunda Guerra para os crimes promovidos pela Alemanha nazista, quando brancos se mataram em grande escala. Nessa ocasião, chefes de Estado e de governos mundo afora se reuniram para criar um pacto, defendendo que eles não poderiam mais se matar daquela maneira. Foi aí que construíram a Organização das Nações Unidas, em torno da ideia de que não se poderiam repetir aqueles crimes contra a humanidade, humanidade esta restrita à existência dos europeus e brancos porque o mundo vinha de uma experiência de séculos de escravização de africanos e de genocídio de povos indígenas na América, que não foi suficiente para a articulação de grandes pactos que dessem fim ao extermínio desses povos. Presenciamos, na América, 400 anos de escravidão e também em outros momentos do século 20. Então, a ideia do genocídio como uma política de Estado poderia ser aplicada no Brasil, visto que, seja a partir de políticas dirigidas ou a partir da omissão – que também é resultado de políticas -, a população negra e os povos indígenas têm sido alvos históricos desses resultados.
redeGIFE: Então, a falta de políticas direcionadas à população negra pode ser considerada uma forma de genocídio?
Douglas: Para nós, é genocídio quando a segurança pública promove a morte de um segmento específico da população. Há genocídio quando políticas de saúde pública não atendem as especificidades da população negra, que depende fundamentalmente do setor público pra ter acesso ao tratamento de saúde porque a massa da população negra não pode pagar o serviço privado. Quase 90% da população que depende do SUS [Sistema Único de Saúde] para ter um atendimento de saúde é negra. Então, a precarização do SUS está condenando a população que depende desse serviço. Outros vários dados e pesquisas demonstram isso, até o absurdo de que mulheres negras recebem menos anestesia no parto do que mulheres não negras. Pessoas negras ficam menos tempo em consulta do que pessoas não negras e têm muito mais dificuldade de acesso a serviços especializados. Por isso, temos planos de saúde formulados pelo movimento para a população negra.
No campo da segurança pública, da ação violenta do Estado, da violência racial por parte das polícias, do judiciário e do sistema carcerário, todas as pesquisas vêm afirmando de maneira recorrente esses dados: o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 mostra que em plena pandemia a polícia bateu recorde de assassinato e 78,9% dos mortos [em intervenções policiais] são negros. Por isso é política de morte. As políticas públicas resultam nesse resultado, seja pela ação, seja pela omissão. O genocídio histórico promovido pelo Brasil precisa, primeiro, ser reconhecido e depois punido e reparado.
redeGIFE: Existem outras formas de genocídio atualmente no Brasil contra povos tradicionais, por exemplo?
Douglas: A atualização desse genocídio se dá hoje com um governo que é pró-latifúndio, pró-proprietários de terra e jagunços, um governo que promove incentivo à violência no campo contra povos sem terra, ribeirinhos, quilombolas e povos indígenas. A negação do direito ancestral à terra dos povos indígenas, quilombolas e dos povos das florestas é um absurdo. É a atualização mais drástica e profunda do genocídio promovido pelo Estado brasileiro a esses povos que têm direitos históricos.
redeGIFE: Se para algumas pessoas ainda faltava concretude sobre o racismo que estrutura a sociedade, os números da Covid-19 mostram que a doença infectou e fez mais vítimas entre a população negra em razão da marginalização da maioria dessa população. Como você avalia a percepção sobre o racismo nesse período? É possível falar em avanço da conscientização?
Douglas: O Brasil se construiu historicamente assentado no racismo, em um sistema de dominação racial de dimensões políticas, culturais, econômicas e religiosas. O Brasil não existe sem racismo. Falar que o racismo é estruturante é uma redundância porque é óbvio que ele é, visto que é o pressuposto da organização da sociedade brasileira. Ele organiza a vida e a morte. O que sempre houve foi um esforço das elites brasileiras, econômicas e intelectuais em camuflar esse racismo e dar outras explicações para os problemas sociais e as desigualdades que não o próprio racismo. Em momentos de agudização de necessidades, de precariedade e desigualdades, [o racismo] fica mais explícito. Isso só acontece por uma imposição política da formulação do movimento negro. Não fossem as formulações políticas e se o próprio movimento não tivesse trazido o debate ainda antes da pandemia, a crise não seria um momento de maior explicitação do racismo. Se há um maior debate sobre racismo no Brasil, não são as condições subjetivas, a pandemia, a violência policial, a pobreza e a fome que garantiram que isso ficasse mais explícito. Foi a formulação e a luta política do movimento negro que forçou esse debate na sociedade brasileira, sendo que antes da pandemia, todas essas questões já contavam com dados graves que nem sempre foram suficientes para trazer o debate do racismo à tona.
redeGIFE: Isso quer dizer que a superação da crise econômica atual está ligada ao combate às desigualdades?
Douglas: O racismo nunca foi e ainda não é considerado na formulação da equação, mas sempre está no resultado. Uma manchete recente da Folha de S.Paulo diz que Campanhas de Lula e Ciro querem menos pautas identitárias e mais economia. Há uma tendência em tentar desqualificar e diminuir a importância desses debates que são tidos por parte da elite política brasileira como identitários. Então, vamos discutir economia e pobreza. Qual é a maioria do povo desempregado? Qual é a maioria do povo que depende de trabalho informal? Qual é a maioria do povo na miséria, que passa fome? Todas as respostas dão no mesmo lugar: são pessoas negras. Sendo as mais afetadas pela realidade política econômica do Brasil, a economia precisa se voltar para isso, senão não estará discutindo a realidade. Então, o que eles chamam de pauta identitária é o pressuposto do debate econômico brasileiro, só que eles não reconhecem isso porque são racistas. Só uma sociedade não racista consegue perceber que, em um país como o Brasil, ou a economia se volta para a questão racial ou não vai resolver os problemas da sociedade. Se a questão racial não for o centro do debate brasileiro, nenhum debate sobre economia, política ou cultura vai se desenrolar como deveria ou poderia.
redeGIFE: Especialistas afirmam que a abolição da escravatura produziu poucas mudanças efetivas nas condições da população negra, que continuou às margens da sociedade. Quais são os primeiros passos para caminhar no sentido de diminuir o abismo entre brancos e negros?
Douglas: Ou seja, qual é o percentual da riqueza nacional fruto direto da experiência da escravidão e as fortunas de famílias que são fruto de 400 anos da escravidão no Brasil? Qual seria a indenização necessária para cada família negra se considerarmos o prejuízo social e econômico que elas tiveram por terem os seus ancestrais escravizados? Que lugar eu, enquanto filho de uma família de negros, ocuparia na sociedade, se minha família tivesse sido reparada nos dias seguintes à abolição? Há um acerto de contas histórico a ser feito, o que passa pelo reconhecimento dessa dívida, pela elaboração de uma política de reparação histórica e pela efetivação de políticas dirigidas de ação afirmativa de grande alcance e escala, políticas de empreendedorismo e investimento econômico pesado na comunidade negra em todo o país. Douglas: É preciso formular políticas que considerem o racismo e que visem equacionar essas desigualdades. Há estudos que demonstram que se continuássemos na velocidade de implementação de políticas de ação afirmativa para negros antes do segundo governo de Dilma Rousseff, ainda demoraríamos 50 anos para que a população negra ocupasse espaços equivalentes no mercado de trabalho em relação aos não negros, por exemplo. Seriam necessárias três décadas de cursos de Medicina ocupados 100% por negros para que o número de médicos negros e não negros equivalessem no país. Estamos falando de uma sociedade construída a partir do racismo e da desigualdade racial.
redeGIFE: O que impede que políticas de reparação histórica sejam colocadas em prática? Existe alguma formulação nessa direção?
Douglas: As políticas que citei aqui são consideradas radicais e sequer a esquerda brasileira considera como possibilidade, infelizmente. Por isso, defendemos um projeto político do povo negro para o Brasil inteiro, não apenas para o povo negro, porque uma vez saldada a dívida histórica com a população negra, com os povos indígenas e todos os outros povos, atendendo às necessidades básicas daqueles que estão ‘no fundo desse poço’, naturalmente, os que estão acima, serão beneficiados. Por isso, não há política mais radical a ser formulada e colocada em prática do que as propostas que o movimento negro tem construído historicamente e que sempre foram silenciadas, desvalorizadas, inclusive pelo campo progressista e democrata. O que tem de mais avançado, no meu ponto de vista, hoje, é o programa da Coalizão Negra por Direitos. São 14 princípios e 25 agendas.
redeGIFE: Um relatório apresentado em junho pela Organização das Nações Unidas (ONU), realizado a partir da morte de George Floyd, nos Estados Unidos, cita a violência da polícia brasileira como um dos casos de racismo sistêmico. Ao mesmo tempo, levantamentos mostram que os próprios policiais negros também são mais vítimas de assassinatos do que policiais brancos. Nesse sentido, qual é a importância de coletivos e organizações do movimento negro, como a própria Coalizão Negra, em pautar e incentivar esse debate a partir de ações como a campanha Alvos do Genocídio?
Douglas: A polícia brasileira é a que mais mata negros no planeta, é uma das mais violetas do mundo. Antes do acontecimento dramático que levou à morte George Floyd e das grandes manifestações mundiais contra o racismo policial, a ONU já havia denunciado a violência da Polícia Militar no Brasil. A violência policial que tem sido denunciada pelo movimento negro só ganhou atenção nos últimos poucos anos, de maneira que é uma novidade que brancos falem sobre isso. É uma novidade que setores médios reconheçam que a violência policial atinge a população negra de maneira desproporcional. Quem sempre fez o recorte racial da violência na polícia é o movimento negro, que atua no vazio, na escuridão, no deserto, no silêncio dessas instituições. Se chegamos até aqui com o debate sobre racismo colocado publicamente como ele está hoje, é mérito único e exclusivo do movimento negro organizado, que constrangeu os setores médios, os partidos políticos de esquerda, o sindicalismo, as ONGs, as fundações e a academia branca com empenho, teimosia e permanência da denúncia. Hoje falam sobre o tema, mas até então estavam mudos e inertes ao seu próprio racismo.
redeGIFE: O racismo permeia a maioria dos âmbitos da vida em sociedade: a contratação nas empresas, os esportes, a faculdade, a moradia, a saúde. Como a sociedade civil organizada pode contribuir para o advocacy em prol da criação de políticas públicas que garantam os direitos da população negra?
Douglas: A sociedade civil organizada brasileira precisa apoiar o fortalecimento, a estruturação e a construção autônoma e independente do movimento negro organizado. Existem partidos dirigidos por brancos, formas de fazer política tradicionalmente brancas, organizações do terceiro setor ricas, fundações e grupos de direitos humanos brancos. É muito importante que essas instituições sejam fortes, estruturadas, tenham suas sedes nas capitais brasileiras, seus recursos, condições de empregabilidade e de trabalho. Mas qual é a organização negra brasileira que tem essas condições? O grande desafio que temos hoje é fortalecer articulações e instituições negras para que elas possam existir de maneira autônoma e independente como as organizações brancas e para que também tenham uma sede no centro das capitais brasileiras. A sociedade civil organizada precisa fortalecer a organização política, estrutural, econômica, independente e autônoma das organizações negras. Não podemos sair dessa tempestade para reconstruir o Brasil com os mesmos atores de sempre. Se há uma vontade responsável e sincera dos setores médios que hoje se dizem antirracistas em contribuir na luta contra o racismo brasileiro, é incentivar e apoiar que esses atores do movimento negro surjam, se fortaleçam e falem em seu próprio nome. Esse é o exercício da Coalizão Negra por Direitos. Respeitamos todas as organizações e acreditamos que todas são importantes, mas nós temos o direito de existir, precisamos fortalecer nossas bases, temos uma elaboração política que deve ser respeitada e queremos existir fortes e autônomos.