O Novo Ensino Médio (NEM), que vem sendo implementado em escolas públicas e privadas desde 2021, aprofunda as desigualdades educacionais. Sua aplicação, prevista na Lei 13.415/2017, determina que escolas aumentem a carga horária do ano letivo, relativiza a importância de disciplinas básicas, supostamente, oferecendo diferentes itinerários formativos para completar a programação das aulas, entretanto, não oferece orçamento mínimo para implementação dessas alterações estruturais no currículo. Além disso,  todas as transformações foram realizadas sem a escuta qualificada de estudantes, das entidades de classe, organizações historicamente ligadas à luta pelo direito à educação, entre as quais destacamos as organizações do movimento negro, quilombola e indígena.

Essa reforma anuncia, entre seus grandes objetivos, a qualificação de estudantes para inserção no mercado de trabalho. Entretanto, em nenhum momento, discute os sentidos do trabalho na sociedade brasileira e como sua história está intimamente vinculada ao modo de produção escravista; não se propõe a discutir de maneira mais aprofundada como as juventudes brasileiras historicamente vivenciam as experiências do trabalho e as contradições presentes nesse universo atravessado pelas desigualdades de raça, classe, gênero e, assim, contribui sobremaneira para a formação de gerações acríticas à condição do trabalho e de trabalhadores no Brasil, o que enseja a compreensão de que são naturais as desigualdades de renda e as práticas de humilhações sociais e raciais que permeiam ainda este universo.

Invencionices como disciplinas sobre empreendedorismo, a obliteração de horas/aulas das disciplinas como português e matemática, a exclusão de disciplinas como filosofia e sociologia e a menor abertura para os direitos de aprendizagens vinculados mais estreitamente à implementação da lei 10.639/03 e 11.645/08, à justiça racial, de gênero, acesso à justiça e direitos humanos figuram a tônica do currículo dessa reforma, o que demonstra o ausência do diálogo com as necessidades contemporâneas das juventudes brasileiras. Outra questão importante é que essa reforma não enseja, propõe ou sugere nenhuma ação objetiva para conter o grave problema da evasão escolar e que recai de forma mais severa sobre os jovens negros brasileiros.

Tal reforma foi empreendida sem considerar as condições para reparação salarial e  viabilizar as melhorias necessárias nas condições de trabalho para os profissionais da educação pública, reivindicação histórica e urgente dessa categoria profissional. 

Para estudantes e famílias, é reforçada a ideologia de construção de uma escola pública voltada única e exclusivamente para formação de mão de obra para o mercado de trabalho, pois há uma desvalorização de disciplinas do campo das humanidades e a valorização exacerbada do campo das áreas técnicas. Dependendo do itinerário que o aluno percorrer, disciplinas como português, matemática, geografia, história, sociologia e filosofia saem da grade. Com isso, o novo modelo os priva da oportunidade de ampliar o conhecimento e repertório sobre as matérias pressupostas no ENEM e diversos vestibulares de todo o país, além de conter o desenvolvimento do pensamento crítico, o que é muito importante para o desenvolvimento intelectual de crianças e adolescentes.

Essa ideologia não compreende, por exemplo, os anseios da maioria de estudantes negros e periféricos que, além de uma formação para funções operacionais de trabalho, também querem ter valorizado o seu potencial intelectual e crítico para contribuir com a sociedade. Assim, o sentido da escola é esvaziado porque o estudante deveria encontrar nela um espaço organizado e sistematizado, de acordo com sua faixa etária e outros pré-requisitos para ampliar o conhecimento. Quando a realização de disciplinas básicas se torna opcional (essas que são, há muito tempo, pensadas e comprovadas como eficazes para atender as fases do aprendizado) e outras que podem ser aprendidas fora da escola são incluídas na grade, a imagem que fica é de que a escola é, agora, um espaço de conhecimento mais limitado.

Aprovada a toque de caixa, essa que seria a necessária Reforma do Ensino Médio não considerou a participação de diversos setores da sociedade, não construiu condições para participação efetiva das organizações históricas do movimento negro e quilombola, muito menos de suas expressões juvenis. Não ouviu também os movimentos de cursinhos populares, espaços diferenciados e acolhedores que recebem jovens, em especial negros e periféricos, que dependem exclusivamente do sistema de ensino vigente, e que buscam através do ensino crítico, transformar suas vidas.

É prudente revogar a lei que institui o Novo Ensino Médio porque o princípio da equidade, não apenas a racial, não está entre os princípios que organizam suas ações. Em uma sociedade que pretende inaugurar um novo período democrático e compreende a Educação como um Direito Fundamental, é um erro não oportunizar o debate franco, democrático e aderir ao princípio de equidade como central nesse processo, reconhecendo, dessa forma, as ações afirmativas como uma estratégia legítima de produção de igualdade no EM. Caso isso não ocorra, o NEM se apresentará como uma política que apenas perpetuará desigualdades diversas, inclusive, as raciais e de gênero, visto que meninos negros figuram entre as principais vítimas da exclusão do ambiente escolar. 

Sabemos que é possível construir na sociedade a capacidade imaginativa e também de ação do governo (como vivenciamos nos dois mandatos anteriores do presidente Lula),  de produzir uma unidade nacional em torno desse tema que é tão relevante. As discussões sobre os rumos da educação não podem ficar sujeitas a uma agenda administrativa. A atual legislação do EM deve ser revogada imediatamente para que seja propiciado um período amplo e democrático para a construção de um Ensino Médio popular, antirracista, antimachista, com qualidade social e organizado a partir do princípio de equidade para que se possa potencializar as trajetórias acadêmicas e das vidas da juventude brasileira, em especial, das juventudes negra, quilombola e indígena.

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