Em entrevista, Thiago Fernandes fala sobre cinema, sociedade e como a representação cinematográfica impacta na autoestima de pessoas negras

Thiago Fernandes tem 41 anos, é um homem, negro, PDC, jornalista, videomaker, fotógrafo e cria dos Pontos de Cultura da cidade de Diadema, região metropolitana de São Paulo. O multicriador também é desenvolvedor e coordenador da TV Uneafro. 

A trajetória do coordenador teve início na Casa do Hip-Hop, em Diadema, no ano de 1999. “Foi o Movimento Hip-Hop que me trouxe consciência política de entender sobre racismo através dos 4 elementos da cultura e também com as  lideranças do movimento negro que circulavam pela casa”.

Foi por meio da “TOCO FILMES”, uma produtora de cinema experimental montada a partir das experiências culturais do território, que Thiago organizou sua caminhada por uma produção cinematográfica que prioriza uma narrativa negra e periférica. Até que, em 2019, provoca a fundação da TV Uneafro e como ele mesmo cita, “uma espécie, ainda que modesta, de reparação histórica”.

Thiago conta em entrevista ao Jornal Identidade como o processo de democratização do acesso aos meios de produção audiovisual fez com que surgisse uma geração de cineastas negros que se organizam, ocupam e criam no hiato das produções do cinema negro, quais são suas perspectivas e quais caminhos devemos tomar para que mais pessoas ocupem esse espaço.

Quais os desafios do audiovisual negro no Brasil? 

Thiago: Essa geração do cinema negro contemporaneo têm conquistado muitos avanços sobre a reconstrução da imagem do povo negro retratado nas telas, tv e publicidades. Sem dúvidas, o enfrentamento à hegemonia da branquitude de sermos representados através das visões eurocêntricas da indústria cinematográfica saturou, mas permanece viva e sem intenções pacíficas de largarem o osso.

Não podemos mais ser representados por quem não sabe o que é o racismo em sua amplitude de significados e símbolos, basta! 

Queremos contar as nossas próprias histórias nas suas mais infinitas diversidades e complexidades, e esse contar vem carregado de sentimentos afetuosos que, por vezes, denunciam e, por outras, trazem um sentimento de pertencimento de uma arte verdadeiramente livre, representativa e com a nossa cara.

Sabemos que ainda há muito trabalho pela frente quando se fala de populações racializadas. No recorte do setor audiovisual, quais são as batalhas enfrentadas pelos profissionais negros do ramo?

Thiago: É um longo trabalho a ser realizado, desde as disputas por financiamento através de políticas públicas que cotizam parte de suas rúbricas para proponentes negros, LGBTQIA+, PCDs e povos originários, até a eterna vigilância em quem está do outro lado da mesa analisando os projetos. Passando pelas péssimas condições de trabalho para um jovem que precisa se deslocar do extremo leste de São Paulo, com 2 ou 3 horas de antecedência, para chegar no set de filmagem às 6 horas da manhã para trabalhar o dia inteiro, numa rotina que, muitas vezes, acaba adoecendo a pessoa e o afasta ainda mais da produção cinematográfica.

Para se ter uma ideia do longo caminho a ser percorrido, Adélia Sampaio, que dirigiu AMOR MALDITO em 1984, foi a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem de ficção no país, seguida por Glenda Nicácio, com CAFÉ COM CANELA de 2017, mostram o hiato de 33 anos entre uma produção de uma mulher negra e outra.   

A distribuição onde podemos notar as faltas de sala de exibição e de políticas públicas para distribuir, de maneira mais popular, ingressos para nosso povo ir ao cinema de maneira mais democrática ou a falta de abertura de espaços de streaming, tv fechada e aberta dificultam e tardam as inserções representativas do cinema negro.

O trabalho em rede tem sido a solução encontrada para que, de forma coletiva, se consiga realizar os sonhos e projetos da população negra. O que você acha que pode ser desenvolvido do ponto de vista da criação de uma rede negra de cinema?

Thiago: Foram criadas algumas formas de organizações coletivas de realizadores negros, a APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro) é uma delas, ela conta com rede nacional de mais de mil associados dos 27 estados. Idealizado pela APAN, o FIANB  (Festival Internacional do Audiovisual Negro do Brasil) é uma forma de pensar o cinema negro contemporâneo não apenas na inserção de realizadores negros, mas também na permanência nos espaços de criação e poder. 

Como proposta de distribuição de conteúdo, a APAN criou também a plataforma de streaming chamada Todes Play, onde os conteúdos são disponibilizados através de uma assinatura diretamente no canal.

Outra forma é a RAIO – Rede Audiovisual de Inclusão Orquestrada, que nasce com o objetivo de contribuir com a equidade de gênero, raça e representatividade no mercado audiovisual brasileiro. A ideia é ser o elo que garante confiabilidade e segurança ao conectar  profissionais e empresas do setor audiovisual orientados pela potência da diversidade. 

Sem deixar  de reverenciar quem já faz esse trabalho em rede há muito tempo, temos as plataformas da Cultne, que é o maior canal de conteúdo e cultura negra, talvez, do mundo.

Qual a importância da construção de um imaginário onde pessoas negras sejam protagonistas neste país, na perspectiva do audiovisual? 

Thiago: A valorização da negritude em todos os espaços de poder como forma de combate ao racismo estrutural passa pelo cinema, as diversas formas de construção de um imaginário positivo da imagem do negro, seja na tela ou por trás das câmeras, onde a equipe e as principais funções para a produção de filme negro passam também pelo protagonismo negro da equipe, desde a concepção da obra até a qualidade na  exibição e circulação nos espaços que proporcionam debate.

Por muito tempo, fomos desinteressados de buscar conteúdos de cinema brasileiro e isso nos colocou num apagamento histórico, portanto, a responsabilidade dessa geração e das diversas formas diaspóricas e ancestrais é recolocar o negro como um dos povos mais significantes para a história desse país através dos costumes, culturas, dialeto, culinárias, religião, tecnologias e futuros.

Como coordenador da TV Uneafro, o que esse canal vem colaborando para a construção desse imaginário junto à juventude negra?

Thiago: A TV Uneafro é uma parte de um processo de enfrentamento ao racismo, nela, discutimos temas importantes para o nosso povo, para os nossos territórios e para os nossos futuros. É um instrumento para a busca do “bem viver”, onde formar novas lideranças, novos conteúdos e novos aprendizados possam, sobretudo, contribuir com o combate do déficit educacional/curricular dos nossos alunos, oriundos de escolas públicas, além do resgate de autoestima e protagonismo de novos repórteres, apresentadores, fotógrafos, designers, etc.

As formas coletivas de produção visam contribuir com o debate das novas narrativas em relação à negritude, olhando para os saberes tradicionais dos povos de terreiro, povos originários e toda a diáspora desse acúmulo de conhecimento produzido e apagado durante séculos. 

A TV Uneafro é uma espécie, ainda que modesta, da reparação histórica que necessitamos para nos situarmos onde estamos e para onde queremos ir. O cuidar da história e memória desse movimento social negro tão importante no cenário nacional que é a Uneafro Brasil, com muito carinho, respeito e compromisso com o tempo. 

Nesse sentido, sentimos muita gratidão pela generosidade dos nossos professores, coordenadores e alunos em nos deixar ser alunos também dessa história e poder registrar, através das lentes desse instrumento audiovisual, a revolução acontecer de forma contínua e silenciosa. 

por Mayara Nunes

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