Para participantes do “Aulão Ambiental’ da Uneafro Brasil, encontro foi exemplo de como buscar soluções para combater a necropolítica e o racismo brasileiros

Por: Luiz Soares

Na última quinta (22), representantes dos movimentos negro, quilombola, campesino e ambientalista se reuniram para mais um aulão da Uneafro Brasil. Eles estavam ali, principalmente, para conversar com os jovens atendidos pelo Núcleo Virtual da organização, promovendo uma formação sobre racismo ambiental e como combatê-lo a partir do cuidado da terra, do corpo e da mente, além da produção de sua própria comida. 

O aulão marcou o início de um projeto da Uneafro Brasil que pretende contribuir para essa auto-organização territorial e comunitária da juventude negra na resistência ao racismo e à necropolítica, bem como se colocar na centralidade do debate ambiental, na mesa de decisão e na cobrança do Estado. 

As primeiras atividades consistirão na criação de três hortas urbanas em três dos 39 territórios onde a Uneafro Brasil atua. São eles: Poá, no Núcleo XI de Agosto; São Bernardo do Campo, no Núcleo Marielle Franco; e São Paulo, no bairro de Perus, no Núcleo Quilombaque. Ao longo de mais de uma década, os 39 núcleos atenderam mais de 12 mil pessoas presencialmente nos cursinhos comunitários. Em 2020, com a chegada da Covid-19, as atividades educacionais presenciais foram adiadas, mas ações emergenciais de apoio às comunidades do entorno continuaram.

Desde então, o Núcleo Virtual desempenha o papel fundamental de oferecer a 1.500 alunos e alunas um espaço de acolhimento e acompanhamento pedagógico online, organizado por professores voluntários. Essa iniciativa é o que dá condições para a continuidade dos estudos desses jovens em casa e em segurança, mostrando a todos e todas como não foram esquecidos – pelo menos pelo movimento negro – e que podem competir, de alguma forma, ao ingresso a universidades.   

Nosso elo

A qualidade e a potência dos palestrantes foi um dos diferenciais do evento, como disseram os mediadores Jéssica Ferreira e Clayton Belchior, articuladores da Uneafro, e sempre eram exaltados nos comentários pelos participantes. Até mesmo para os convidados – todos com muita bagagem em sua área de atuação – a marca foi o que uniu todos e todas naquele momento: o respeito aos ancestrais de cada povo e uma sensação da necessidade de ressignificar a vida como forma de luta. 

“A gente traz da nossa ancestralidade africana esse espírito de solidariedade e comunitário. Esse senso de cuidado, atrelado ao debate político, ao trabalho de formação e à educação popular, é muito valioso. Acredito piamente que essa ferramenta seja muito importante para transformarmos a realidade que estamos e fazer isso dia após dia”, afirmou Cristiane Gomes, coordenadora de Projetos da Fundação Rosa Luxemburgo, apoiadora do evento e do novo projeto da Uneafro Brasil. 

Conforme explicou Vanessa Nascimento, coordenadora executiva da Uneafro Brasil, o encontro foi pensado com muito carinho para todas e todos e, por isso, é um momento de retomar o fôlego para continuar a luta e ajudar os nossos e nossas que têm sofrido na mão do Estado e que tenta nos matar, seja por tiro, doença ou privação de direitos. 

“Agradecemos a todos os parceiros, como a Fundação Rosa Luxemburgo, neste novo projeto. Estamos há 12 anos promovendo educação popular e ter essa possibilidade de falar com os territórios sobre agroecologia e dizer a toda a comunidade que eles podem plantar e colher, é muito gratificante. Queremos falar aos moradores e moradoras, principalmente nos territórios periféricos onde a informação sempre chega precarizada. Nós podemos comer bem e comer sem agrotóxicos”, comemorou ela.  

A mensagem de paz e leveza também foi seguida pelo rapper e fundador do Lab Fantasma, Emicida, que reforçou o momento de dificuldade que todos estão passando, mas como esses encontros recarregam a bateria e dão forças para buscar um amanhã melhor. 

Para ele, assim como dizia Nelson Mandela, a plantação é uma forma de poder sonhar com o mundo que queremos construir. “Isso, pra mim, é fundamental. O primeiro ensinamento que a relação com a terra te dá é você aprender a respeitar o tempo. E a gente vive num tempo que ensina a gente a desrespeitar o tempo. A gente é incentivado a acreditar que tudo precisa estar no nosso tempo. As sementes, a terra, as plantas são indiferente ao mundo cultural dos humanos. E ao aprender isso, fico me questionando se eu também não tava querendo apressar as coisas demais”, disse ele.  

“Às vezes, a gente pensa que precisa de um tamanho de terra absurdo, conhecimento e equipamentos específicos, mas plantar é a coisa mais básica que qualquer um de nós pode fazer. Mas ainda temos esse poder na nossa mão e precisamos defender isso. Isso está ligado a controlar o que a gente come, sem veneno. Falar que eu cuido da terra é a coisa mais equivocada. É a terra que cuida de mim. Esses novos saberes que vão limpar os nossos olhos e fazer com que a gente se conecte com a casa comum de todos nós, que é a terra”, reforçou Emicida.

Emicida finalizou sua participação dando um recado para a juventude. “Meus amigos, não estamos no tempo do desenvolvimento, mas do envolvimento. Este é o momento de se envolver mais do que nunca. Esteja aberto a escutar, a entender que existem várias formas de existir e conceber o mundo e todas têm igual valor”, declarou o rapper. 

Para Bianca Santana, militante da Uneafro Brasil, diretora da Casa Sueli Carneiro e colunista da Revista Gama e do Ecoa-UOL, esse novo olhar, a conexão com a terra, também são formas de resistência e sobrevivência.

“As nossas ancestrais e nossos ancestrais indicaram os caminhos, precisamos escutar, como disse o Emicida. Os quilombos, desde o século XVI, nos mostraram a autonomia, a possibilidade de existir, de produzir vida, apesar dos que nos matam e querem a nossa morte, como acontece hoje com essa política de morte, que nos mata e deixa morrer. Muitas respostas estão aqui, na terra. É uma alegria a Uneafro Brasil ouvir esse chamado”, destacou Bianca.

Em sua fala, Bianca também destacou a importância da reforma agrária, também muito conclamada pelos comentários dos participantes, sobre a importância de movimentos, como o MST, os quilombos, entre outros caminhos que estão desenhados.

Quem já trilha esse caminho?

Algumas convidadas foram fundamentais para trazer o discurso à prática. Nilce Pontes, coordenadora do Estado de São Paulo da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), destacou que falar sobre agroecologia, território e ancestralidade é falar das próprias vivências e de como se localizar nesse contexto de mundo pandêmico. 

“Para nós, está cada vez mais forte a necessidade de produzir alimento de verdade, produzir vida e falar de quanto o alimento é importante para a sustentabilidade desses territórios, como as comunidades quilombolas, e daqueles que dependem disso tudo. Temos um lema no Vale do Ribeira, que é o resistir para existir. Infelizmente, neste momento, tudo aquilo que poderia ser considerado bom, como as Unidades de Conservação e comunidades preservadoras dos territórios, têm se tornado ameaças, quando politizam e usurpam esses direitos. Há mais de 500 anos, estamos resistindo por direitos, identidade, cultura e ancestralidade”, afirmou Nilce.

A coordenadora da Conaq destacou que é importante que as pessoas entendam o que é agroecologia para cada povo, diferenças, muitas vezes, usadas para questionar as comunidades tradicionais. Aos quilombos, indígenas, para a academia e para as pessoas que estão começando a mexer com a terra, mas cada um precisa ter o seu espaço. 

“Mas todos esses povos tradicionais têm um único objetivo comum que é a luta pelo território, conservação e preservação desses espaços de identidade e de resistência. Mas a forma como nos organizamos nesses territórios é diferente. E para manter essas tradições, precisamos ter nosso território regulamentado”, concluiu ela. 

Exemplo destes outros formatos, porém, com o mesmo propósito, está no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Como disse durante o evento a militante Maria Alves, é necessária a união dos movimentos, pois com a agricultura familiar, por exemplo, é possível alimentar o povo. 

“Estamos num momento de se reconhecer enquanto grupos, movimentos e pessoas preocupadas com tudo isso que está acontecendo. Quando a gente fala da formação humana e agroecologia, queremos dizer que é um movimento que agrega. É importante defender isso. A agroecologia não é um sistema, é um movimento, uma filosofia de vida”, afirmou ela.  

“Eu falo que nasci sem-terra e continuo sem-terra, pois a terra não é mercadoria, não é propriedade, é pra plantar alimentos, viver e para as vidas se sustentarem. O sistema agroecológico vem pra dizer que temos que produzir a diversidade, independente do lucro. A produção precisa ser sustentável e solidária, não para o lucro máximo. Não podemos desrespeitar essa oportunidade de ainda termos vida. Precisaremos seguir de mãos dadas para conseguir reverter essa situação de retirada de direitos e danos sociais e ambientais”, reforçou dona Maria Alves.  

Para dona Maria, a pandemia mostrou como o movimento é capaz de atender diversas famílias a partir da agricultura familiar. “Conseguimos diversas doações, marmitas solitárias, continuamos trabalhando e plantando. Quando defendemos a alimentação saudável, também defendemos preços populares e fazemos isso também com os trabalhadores das cidades, lutamos também pela merenda escolar com alimentação saudável da pequena agricultura, alimentar todo mundo, nós somos capazes”, reforçou ela.

Conforme destacou a militante do MST, existe grande pressão dos grandes atores do agronegócio brasileiro em dizer que a agricultura familiar não dá conta de produzir alimento em grande quantidade. Conforme reforçou a palestrante, 70% do que vai para as mesas das pessoas vem da pequena agricultura e assentamentos da reforma agrária, mas são necessários mais apoio e subsídio para esse setor. O MST, por exemplo, é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. 

“Com mais apoio, avançamos ainda mais. Já temos muitas relações na academia, com outros movimentos, dando a mão para os indígenas e quilombos. A agricultura urbana tem crescido muito, como as hortas escolares, comunitárias e em linhões. É saudável e vamos lutar por isso dando as mãos. Imagina você morar em uma região, poder atravessar do outro lado da rua e conseguir uma cesta de verduras e frutas, isso é a coisa mais linda do mundo”, finalizou ela. 

Mente sã em corpo são

O evento também foi uma oportunidade para falar sobre a relação entre o corpo, a terra e a mente. A psicóloga da Uneafro, Cátia Cipriano, destacou como algumas práticas integrativas, como a massagem Ayurveda, casam com saberes ancestrais e do cuidado entre corpo, mente e alma.

“A Ayurveda amplia nossos conhecimentos e faz um resgate ancestral. Eu entendo o ser de forma mais holística, o universo de olhar para o todo, e isso também envolve a questão da alimentação. Essas práticas, além de acolhimento, também resgatam os saberes de nossos avôs e avós, do cuidado da terra, das ervas e da natureza. Precisamos olhar para esse corpo, silenciar e ouvir o tambor do nosso coração para chamar a terra para dentro de nós”, destacou. 

Catia apresentou ainda o Núcleo Obará, criado para mostrar como o racismo afeta a mente das pessoas. Ela coordena esse espaço de autocuidado e práticas de saúde integrativas da Uneafro. 

“A Ayurveda é uma medicina indiana milenar, que já traz essa preocupação com o conhecimento ancestral e com o conhecimento do corpo como um todo, ter uma alimentação saudável e práticas energéticas. Muitas dessas práticas foram se perdendo ao longo dos anos. E isso é, pra gente, se reconectar com a nossa essência, com a nossa terra e dar saúde ao corpo. As práticas naturais foram roubadas de nós, estamos distantes de tudo isso. O Obará vem para uma conexão amorosa e efetiva entre nós”, afirma ela. 

Alimentação, fome e emergência climática

Conforme explicou Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama (2016-2018), a pandemia do novo coronavírus foi causada por uma péssima relação da humanidade com o meio ambiente. Alguns líderes mundiais já estão pensando em como criar novas ordens econômicas para o futuro, mas, no Brasil, o pensamento ainda é de séculos atrás. 

 

“O governo tem uma visão arcaica, em que os líderes veem o desenvolvimento como uma questão que você precisa destruir. Isso é uma visão de 60 anos atrás, do século XIX. E algumas pessoas acabam seguindo isso”, afirmou ela. 

Para Suely, é importante que as pessoas tomem conhecimento de todos os retrocessos que o governo tem feito desde o início de sua gestão, principalmente com o “passar a boiada” do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. 

“É super importante, nessa fase, no ano que vem, em que vamos discutir a campanha eleitoral, se envolver, reclamar, pedir. Eles estão destruindo coisas que vínhamos fazendo há quatro, cinco décadas”, declarou. 

Segundo Suely, é fundamental praticar esse envolvimento. Uma pesquisa do IBOPE Inteligência, encomendada pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio), mostrou o que o brasileiro pensa sobre meio ambiente. 77% dos brasileiros preferem proteger o meio ambiente mesmo que isso signifique menos crescimento econômico, 95% sabe que as mudanças climáticas estão aí e têm interferência humana. Mas, quando a pesquisa chega para o que os brasileiros fazem, o número é muito pequeno. 

‘Precisamos impulsionar as pessoas a fazer um pouco mais e passar a mensagem da questão ambiental. Eu não acredito em reversão do governo Bolsonaro, mas na luta sim. E essa luta tem que ser ampliada, sair da redoma dos técnicos ambientalistas, assim como eu, e atingir uma porção maior da população. Acho que a população já percebeu a importância de tudo isso, precisamos ajudá-los a se mover. Educação ambiental, agroecologia e a questão racial são importantes e podem incentivar a luta pela proteção do meio ambiente”, concluiu ela. 

Para concluir o evento, Sheila de Carvalho, advogada de Direitos Humanos e integrante da Coalizão Negra por Direitos, falou sobre a importância dessas lutas mencionadas anteriormente para combater a fome. Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede PENSSAN, mais da metade da população brasileira vive em alguma situação de insegurança alimentar e 19 milhões de pessoas passaram fome nos últimos três meses de 2020. 

“Falamos hoje de trajetórias diferentes, mas que se conectam e que sonham com outro mundo, muito melhor que este que estamos vivendo. Essa relação entre comida, moradia, sobrevivência e vínculo comunitário é o que une todos nós. Afinal, as práticas do governo não só matam a humanidade de agora, mas a do futuro também”, finalizou ela. 

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