Por Patricia Toni
“Nós temos um poder imenso de acalentar umas às outras, de identificar no olhar e ler nos comportamentos como nossas irmãs estão, mesmo sendo nós marcadas historicamente por sucessivas violações e violências”. A sinergia acolhedora entre as mulheres, em sua maioria mulheres negras, que constroem a Uneafro Brasil, como mostra o olhar de Fabíola Carvalho, educadora social e coordenadora do Núcleo Tia Jura, em São Bernardo do Campo, São Paulo, é determinante para manter ativa as ações lideradas por elas. “Temos a necessidade de sempre estar em movimento, juntas. E uma das coisas que nos fortalece e nos impulsiona é o afeto que emana mesmo em meio a tantas dores”.
A essa aliança, a autora Vilma Piedade dá o nome de “dororidade“, termo que define a união entre mulheres que foram marcadas pelo racismo. “Fomos estruturadas de uma forma muito dura e, hoje, estamos ressignificando esse comportamento, olhando e acolhendo essa dor. Nossa luta por direitos é também a luta pelo afeto, pelo amor, pela liberdade”, aponta Cátia Cipriano, psicóloga e militante da Uneafro desde 2009. Atualmente, ela coordena o Núcleo Obará, espaço da organização reservado para práticas de autocuidado e saúde emocional.
Ações direcionadas para o acolhimento entre mulheres que traziam escuta, abrigo e trocas aconteceram na organização desde sua fundação, mas foram intensificadas a partir de 2015. Samara Sosthenes, covereadora por São Paulo na Mandata Quilombo Periférico e coordenadora do Núcleo Luz, conta como essas práticas foram essenciais para o reconhecimento da sua identidade. “Além dos estudos no cursinho, havia muitos encontros, rodas de conversa e oficinas. Em todas elas, buscávamos estar juntas, compartilhar nossas dores, nossas ânsias, nossas vitórias e nossas alegrias. Isso me deu muita força para resistir em meio a todas as opressões. E eu, como uma mulher transexual, sempre fui vista e aceita nesses grupos. Aqui, me reconheci como mulher preta”.
Abraço apertado, ouvidos abertos, ombros como apoio, palavras de força e manutenção da autoestima. A acolhida nesses momentos é de uma família unida. “É o afeto que se assemelha ao da mãe, da irmã, da tia, da filha, da avó. É a força da nossa ancestralidade que nos movimenta, que gira a engrenagem”, desabafa Samara.
Cátia conta que, a partir dessas reuniões, transformou sua forma de ver o mundo. “Percebo que estruturei ainda mais minhas relações com a ajuda dessas manas que me potencializam, assim como nós continuamos potencializando essa rede de mulheres para o futuro”.
Em 2017, atividades de formação política e geração de renda para mulheres foram criadas. O Circuladô de Oyá, rede organizada por mulheres negras da Uneafro para formações sobre identidade de raça, classe e gênero para estudantes dos núcleos de base, tinha o objetivo de promover espaços de produção e troca de conhecimentos. Do mesmo modo, com o apoio da ONU Mulheres, a Oficina das Pretas foi uma iniciativa que visava potencializar a capacidade de liderança, organização e geração de renda feminina. Hoje, devido às incertezas do período da pandemia, as atividades estão paralisadas.
Exemplo e representatividade
A representatividade é um dos maiores caminhos para promover autoestima e estimular a realização de sonhos que pareciam impossíveis. Para Elaine Correa, professora e coordenadora do Núcleo Ilda Martins/Angela Davis, na Fazenda da Juta, Sapopemba, zona leste de São Paulo, participar de uma organização que possui, majoritariamente, mulheres negras na liderança é entender que a possibilidade de voar alto é real. “A Uneafro é uma organização do movimento negro construída, principalmente, por mulheres negras. Temos muitas delas na coordenação de núcleos e isso mostra que essa realidade não está distante. Para mim, que sou mulher preta, moro na periferia, estudei a vida inteira em escola pública, conheço o território e conheço também muitas histórias de mulheres como eu, essa visão foi um caminho. Mas, mesmo assim, ainda é um desafio”.
O relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) mostra porque há muito o que se avançar. Segundo o documento enviado recentemente ao governo brasileiro, “o mero reconhecimento da violência contra a mulher como problema público, e não como um dado das relações privadas, levou décadas para ocorrer no país”. A agressão física e o feminicídio são os últimos estágios dessa violência que começa ferindo o psicológico, a independência financeira, a ascensão profissional e muitos outros aspectos que atingem, principalmente, as mulheres negras.
“Estamos em um dos países que mais violenta as mulheres pretas. Para nós, não é um trabalho simples ter que lidar com as nossas dores e as dores das nossas irmãs. Mas estamos fazendo trabalhos muito importantes, principalmente com as meninas da periferia e em relação à educação”, explica Elaine.
Uma das muitas histórias desse trabalho que felizmente se repetem dentro da organização é a de Victória Alves. Sua história aqui começa em 2016, quando ela pretendia passar no processo seletivo da Escola Técnica Estadual (ETEC). “Comecei a buscar cursinhos comunitários e descobri a Uneafro. Foi tudo muito importante na minha vida, não só para me ajudar a estudar para o pré-vestibular, como também para entender mais sobre o movimento negro e me reconhecer enquanto mulher negra. Hoje, estou somando na coordenação do Núcleo de Itaquaquecetuba”.
A inspiração pelo exemplo pode ser muito motivadora e o reconhecimento, o impulso para a realização. Enxergar alguém parecido com seus traços e sua história na linha de frente de um trabalho que transforma tantas vidas fez Vitória valorizar ainda mais todo o contexto. “Precisamos enaltecer mulheres líderes, falar que elas estão, sim, construindo o movimento negro. Na Uneafro, por exemplo, há mulheres negras professoras, estudantes, administradoras, advogadas. Quando uma menina, negra e jovem como eu, chega com 13, 14 anos e as vê em todos esses lugares, isso empodera e cria uma rede de fortalecimento. O desafio, no entanto, é combater a invisibilidade que sofremos dentro da sociedade”.
Os limites do cuidado
O que, na maioria das vezes, traz a luz ao trabalho das mulheres negras e às suas contribuições de diversas ordens são, justamente, as redes de apoio organizadas por elas, como é relatado no início dessa reportagem. Esse papel de acolhimento é fundamental, mas não é mais aceito como um peso obrigatório. “A mulher negra quase sempre exerce a função de acolher porque foi ensinada assim, foi ensinada a cuidar de todos, da sua família, como mãe solo e, muitas vezes, contra sua vontade. Isso esgota. A gente também está cansada, a gente também quer respirar, quer ser admirada, quer que as pessoas nos acolham”, desabafa Elaine Correa. “Incrível como, no Brasil, somos sempre subestimadas e colocadas num lugar de cuidadoras. Somos também e isso não é problema, mas os homens também deveriam ser”, completa Fabíola Carvalho.
A carga mental e emocional que os homens deixam recair sobre as mulheres (e que as reserva, quase sempre, ao papel de cuidadoras) é, segundo Cátia Cipriano, fruto da profunda falta de atenção que eles não dão às suas questões internas. “Os homens, principalmente os héteros e que têm comportamentos machistas, estão muito aquém dessa relação de autocuidado. Nós já temos isso cultivado psiquicamente e eles precisam descobrir esse lugar. O machismo impossibilita que se permitam entender a necessidade do afeto”.
A psicóloga finaliza afirmando que a desconstrução dessa estrutura de sociedade precisa ser feita com urgência para que as ações nas ruas, as manifestações na política e as mudanças que a sociedade precisa sejam vividas logo. O olhar para dentro de si é determinante nessa missão. “Quanto mais nós nos conhecemos, mais nos permitimos ao afeto, ao cuidado, ao acolhimento e mais vamos estar preparadas e preparados para as lutas que virão”.
Veja a galeria de fotos do Encontro das Pretas e do Circulado de Oyá: