No dia 20 de dezembro de 2012, o Governador do Estado de São Paulo expôs as linhas gerais de uma proposta para a implantação de um sistema de cotas nas universidades públicas de São Paulo (USP, Unicamp e Unesp). Pela proposta, as universidades estaduais paulistas adotariam um sistema de cotas em que 50% das vagas seriam reservadas para alunos que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas, combinando-se ainda critérios raciais e socioeconômicos. Porém, os alunos ingressantes pelo sistema de cotas seriam submetidos a uma espécie de “reforço”, que consistiria em dois anos de estudos obrigatórios para só então – a depender de seu bom desempenho – iniciar o curso superior, o que foi comparado pelo representante do CRUESP ao “college” do sistema universitário norte-americano.
A proposta para a implantação de um sistema de cotas nas universidades públicas anunciada pelo Governo do Estado e pelo Conselho de Reitores das Universidades do Estado de São Paulo (CRUESP) surpreendeu negativamente as organizações da sociedade civil que há anos dedicam-se a debater formas de democratização do acesso à universidade. Primeiro, pelo seu conteúdo que, além de instituir o inusitado – e inconstitucional – “college” para estudantes cotistas, repete o erro da lei federal que é reservar um percentual de vagas para negros e indígenas incidente sobre 50% das vagas, e não sobre o total das vagas oferecidas, fazendo com que estas populações permaneçam sub-representadas no espaço universitário. Segundo, pelo prazo injustificadamente longo para implantação (2016!). E terceiro, pela falta de legitimidade democrática, vez que a proposta jamais foi apresentada nos diversos fóruns em que a implantação de cotas foi tema.
Para que as críticas que aqui serão feitas possam ser mais bem compreendidas, a análise da proposta será feita a partir de duas perspectivas: uma política e outra jurídica. Não se trata, por óbvio, de separar essas duas dimensões que estão irremediavelmente ligadas, mas tão somente facilitar a compreensão dos problemas que tornam a proposta de cotas do Governo do Estado de São Paulo ilegítima e inconstitucional.
Uma proposta ilegítima
Lembro-se agora de um interessantíssimo livro da autoria de Adalberto Paranhos, intitulado “O roubo da fala” (Boitempo Editorial, 2006). Nesse livro o autor demonstra de forma competente como o discurso do “trabalhismo” encarnado pelo Estado Novo foi, na verdade, a incorporação de reivindicações que historicamente já faziam parte das lutas de trabalhadores e sindicatos. A situação exposta no livro nos traz algo muito peculiar na política: diante da impossibilidade de se opor sistematicamente e de forma violenta às reivindicações populares, os grupos que estão no controle do Estado criam espaços de consenso em que os conflitos são “diluídos” e o poder legitimamente mantido. É necessário, portanto, que as coisas mudem para que permaneçam exatamente como estão, nas palavras de Falconeri, personagem de “Il Gattopardo”, do italianoTomasi di Lampedusa. A essa dinâmica de violência e consenso que perpassa a manutenção do poder político, outro autor italiano, Antonio Gramsci, chamou de hegemonia.
No caso da proposta de cotas do Governo do Estado e dos reitores das universidades públicas paulistas, o “roubo da fala” mais uma vez se repetiu. Não é novidade alguma que o Governo de São Paulo e os ocupantes das Reitorias das universidades paulistas sempre se posicionaram de forma contrária à política de cotas, em especial a de cotas raciais. Também não é motivo de espanto que em São Paulo existam há vários anos diversos movimentos sociais que, dentro e fora da universidade, lutam pela democratização do acesso à educação e que denunciam a violência sistemática praticada por agentes do Estado contra a população negra. Portanto, a proposta de adoção de um sistema de cotas para o ingresso nas universidades paulistas não nasceu a partir da mente criativa ou do coração sensível dos luminares do palácio dos bandeirantes, ou ainda da profunda inspiração dos sábios das universidades paulistas; a proposta apresentada pelo governador é uma reação à luta do movimento negro e dos movimentos sociais, o que também não significa que houve uma “vitória”.
Mas a pergunta que fica é porque um Governo que historicamente se opôs a políticas afirmativas de recorte racial apresenta com pompa e grande cobertura da imprensa uma proposta de cotas sociais e raciais? Por que o Governo e as reitorias passaram do desprezo e da violência pura e simples para a aparente busca do “diálogo”? Ao que parece, certos acontecimentos colocaram em xeque a legitimidade das decisões tomadas pelo grupo político que ocupa o Governo do Estado de São Paulo e as reitorias das universidades estaduais, de tal sorte que uma mudança de posição sobre a adoção de cotas na educação tornou-se fundamental para a manutenção da hegemonia. Podemos resumir esses acontecimentos que determinaram a mudança de posição sobre as cotas a três: 1) decisão do STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186, que julgou constitucionais as cotas raciais; 2) a promulgação da Lei Federal 12.711/2012, que instituiu cotas raciais e sociais nas universidades federais e; 3) o aumento das denúncias dos casos de violência policial contra a população negra.
Antes da decisão do STF, os que são contrários às cotas raciais sempre brandiram o argumento da inconstitucionalidade. As cotas, segundo estes, “violavam o principio da isonomia”. E o conservadorismo tem na legalidade o seu mais forte aliado. Enquanto fosse tecnicamente possível associar “cotas” e “ilegalidade”, as posições contrárias às cotas estariam plenamente justificadas.
Mas aí vem o STF, e por unanimidade, diz que as cotas são, sim, constitucionais. O máximo que se pode dizer agora é que o STF “errou”. Mas os mesmos que dizem isso no caso do julgamento das cotas raciais, por exemplo, não admitem que o STF possa ter errado no caso do “mensalão”. Errado ou não, o certo é que uma importante arma política mudou de mãos: a legalidade agora está do lado dos defensores das cotas. Isso é uma contradição insuportável para quem defende seus próprios privilégios porque “estão na lei”, por mais absurdos que esses possam ser.
O STF pela pena dos dez ministros que participaram do julgamento firmou o entendimento de que uma universidade que não dê condições de acesso justas – que levem em conta as desvantagens históricas dos negros – não é democrática. Com isso, pegou-se em outro ponto muitíssimo sensível ao discurso de legitimação do poder: a democracia. Não há democracia onde há racismo, disse o STF. Era o Estado brasileiro reconhecendo por meio de sua mais alta corte que as universidades brasileiras, predominantemente brancas, são racistas e, portanto, não democráticas. E a política de cotas já implantadas em centenas de universidades por todo o Brasil provou ser um instrumento efetivo de combate ao racismo e de valorização da democracia.
E mais: o STF afirmou que políticas de ação afirmativa, “compreendidas como medidas que têm como escopo reparar ou compensar os fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica, não são meras concessões do Estado, mas consubstanciam deveres que se extraem dos princípios constitucionais” (Min. Ricardo Lewandowski, ADPF 186).
Ficou difícil, não é? Uma coisa era opor-se aos inúmeros estudos brasileiros e estrangeiros que atestavam a eficiência das cotas raciais, nem que para isso fosse necessário desqualificar pesquisadores sérios. Outra é dizer que o STF “errou”, um argumento muito ruim, convenhamos. Tornar-se-ia muito complicado, como já se fez antes, acusar de “baderneiros” e colocar a polícia contra pessoas que reivindicam algo que o tribunal mais importante do País considerou como absolutamente compatível com a Constituição.
Agora, pela ausência de políticas afirmativas que produzam resultados efetivos para a população negra e indígena, é o Estado de São Paulo que está na ilegalidade, e não os movimentos sociais que sempre reivindicaram as cotas.
A decisão do STF fez com que os movimentos populares recrudescessem sua luta pela implementação de cotas nas universidades. Em São Paulo gerou a formação da Frente pró-cotas, movimento que reúne mais de 70 entidades. Além disso, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo foi realizada audiência pública em que dois projetos de Lei que criavam cotas nas universidades paulistas e que já tramitavam na casa foram discutidos: o PL 530/2004 e o PL 321/2012.
E para piorar a situação dos opositores das cotas que já haviam perdido a tábua de salvação da legalidade, em 31 de maio de 2012, a Faculdade de Direito da USP – a tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – por meio de sua Congregação, recomendou por unanimidade a adoção de cotas raciais, após reunião em que os movimentos sociais foram recebidos e ouvidos.
Outro fator de peso é o surgimento da Lei Federal 12.711/2012, que institui cotas sociais e raciais em todas as universidades federais do Brasil a partir de 2013. Segundo o texto da lei, haverá uma reserva de vaga de 50% do total para alunos da rede pública de ensino e que serão preenchidos por critérios econômicos e de acordo com a composição racial de cada unidade da federação em que a universidade estiver instalada, conforme os dados do IBGE.
Não bastasse tudo isso, São Paulo experimenta desde setembro de 2012 uma onda de violência em que a participação de agentes do Estado é patente. Só que desta vez a classe média e branca paulistana foi atingida, o que provocou intensa cobertura midiática, apesar de há anos os movimentos sociais denunciarem a violência genocida que vitimiza a população negra. A polícia de São Paulo tem como característica a violência, principalmente contra moradores da periferia, negros em especial. Dos vários casos de violência policial contra a população negra de que a Policia paulista é acusada, chama a atenção um episódio recente, bastante ilustrativo da relação entre a violência contra a população negra e a resistência à implantação de políticas de acesso à universidade: recentemente um estudante negro da USP foi covardemente agredido e ameaçado por policiais militares que duvidaram de sua condição de aluno, dentro do Campus, fato que foi registrado em vídeo e reproduzido pela internet e até pelas grandes redes de televisão.
A resistência à implantação de cotas raciais (mesmo após o assentimento do STF),o surgimento de uma legislação federal que beneficiará parcela importante de estudantes negros e pobres e a maior divulgação da violência contra moradores da periferia, negros e estudantes universitários protagonizada pela polícia paulista, fez com que o discurso, antes restrito aos movimentos sociais e aos partidos políticos e intelectuais mais à esquerda, de que o Governo Paulista é ocupado por um grupo insensível às causas populares, elitista e até mesmo racista se tornasse um sentimento que atingiu boa parte da população.
É nesse sentido que a proposta de cotas do Governo Estadual é uma reação aos problemas do próprio Governo e não aos problemas da população pobre e negra. O Governo do Estado e o CRUESP apresentaram uma proposta que em momento algum foi objeto de discussão com os movimentos populares e com os intelectuais – inclusive os vinculados às próprias universidades – que já debatiam o tema há muitos anos. Foi uma proposta apresentada de “cima para baixo” e que ignorou todos os fóruns que já haviam sido criados para debater as cotas raciais.
É inexplicável que uma universidade como a USP de onde já se pronunciaram intelectuais do calibre de Roger Bastide, Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Clóvis Moura e, mais recentemente Fernando Albuquerque Mourão e Kabengele Munanga não consiga sequer organizar um seminário sobre ações afirmativas e produzir uma proposta independente, democrática e representativa da verdadeira autonomia universitária.
Apenas para que se tenha uma ideia da falta de legitimidade democrática dessa proposta, em reunião realizada no dia 25 de setembro de 2012, e que contou com a participação de organizações dos movimentos sociais, o Conselho Universitário da USP decidiu pela criação de seminários para debater a política de cotas raciais, ocasião em que propostas poderiam ser apresentadas e discutidas.
Mas o que fez o CRUESP e o Governo Paulista ao apresentar a proposta? Fez de conta que nada ocorrera, que não existiram reuniões, assembleias, audiências públicas; que não haviam projetos de Lei tramitando na Assembleia Legislativa, que simplesmente não havia discussão anterior. Apresentou uma proposta “oficial”, como se já não houvesse outras propostas no Legislativo e até nos conselhos universitários.
Vale lembrar que a Constituição não atribuiu poderes aos Chefes de Executivo para dar a palavra final sobre o modo de ingresso nas universidades públicas. Essa é uma decisão que cabe ao Poder Legislativo ou às próprias universidades no uso de sua autonomia (art. 207 da Constituição Federal).
É de se lamentar igualmente o papel dos reitores das universidades estaduais paulistas que, ao participarem da construção de uma proposta à revelia dos respectivos conselhos universitários e cujo anúncio é feito pelo governador, comprovam que estão de joelhos diante do palácio dos bandeirantes e que a autonomia universitária para eles não passa de um discurso oportunista que só serve quando a intenção é impedir que o povo ultrapasse os muros da universidade.
Portanto, os problemas da proposta resultam da sua elaboração, que em momento algum se rendeu aos parâmetros do diálogo. A ausência de um processo democrático de elaboração normativa resultou em diversos problemas jurídicos, como será visto adiante.
Uma proposta inconstitucional: discriminação negativa, ameaça dos estereótipos e violação do princípio da dignidade humana.
A moderna teoria do direito tem insistido que a racionalidade é um dos aspectos fundamentais do direito. Racionalidade não pode ser entendida apenas e tão somente como a compatibilidade lógica de uma norma com outra norma; é racional uma norma que resulte de um consenso produzido por meio de um processo democrático, ou seja, em que foi garantida a participação isonômica e efetiva dos cidadãos.
Ao decidir que a adoção de cotas raciais é constitucional, o STF firmou o entendimento de que o Estado deve estabelecer tratamento distinto a membros de grupos historicamente discriminados a fim de promover a igualdade. Qualquer tipo de discriminação que não tenha um claro propósito inclusivo é incompatível com a Constituição. Com efeito, a proposta do “college” estabelece uma discriminação inconstitucional que tende a dificultar ainda mais o acesso à universidade pública. Na prática, criou-se uma “sala de espera” de dois anos que irá atrasar o desenvolvimento profissional dos estudantes cotistas e desestimular a permanência na universidade.
O “college” promove uma discriminação negativa e a Constituição só autoriza a discriminação positiva. Isso torna inconstitucional a proposta de cotas formulada pelo Governo do Estado de São Paulo e pelo CRUESP, por absoluta incompatibilidade com o princípio da isonomia (art. 5º, caput). Nesse sentido, é importante lembrar o destaque dado às noções de discriminação positiva e negativa pelo Ministro Ricardo Lewandowski em seu voto na ADPF 186:
Ora, tal como os constituintes de 1988 qualificaram de inafiançável o crime de racismo, com o escopo de impedir adiscriminação negativa de determinados grupos de pessoas, partindo do conceito de raça, não como fato biológico, mas enquanto categoria histórico-social, assim também é possível empregar essa mesma lógica para autorizar a utilização, pelo Estado, da discriminação positiva com vistas a estimular a inclusão social de grupos tradicionalmente excluídos. (destacamos)
A justificativa para a existência do “college” é o mérito. Segundo os defensores da proposta o projeto respeita a “meritocracia”, pois fará com que os estudantes de escola pública – presumivelmente despreparados – obtenham as condições para acompanhar o curso e, assim, manter o “nível de excelência” das universidades públicas de São Paulo. Isso, é claro, se os estudantes cotistas tiverem um bom desempenho no “college”.
A respeito da “meritocracia”, nota-se que esse termo, antes utilizado para desqualificar as cotas, agora passou a compor o vocabulário dos defensores da proposta de cotas do Governo do Estado de São Paulo, o que já é motivo de muita desconfiança. Nos dois casos a ideia de mérito é utilizada de modo completamente esvaziado de seu sentido filosófico, cuja primeira grande formulação está na Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Lá, o pensador grego deixa claro que só é possível falar em mérito quando existe igualdade. E quem já leu Aristóteles sabe que ele não se referia a uma igualdade meramente formal, mas aigualdade substancial, da justa distribuição dos bens na polis. Só com igualdade estariam dadas as condições para o pleno alvorecer da virtude.
É difícil não ficar constrangido (ou indignado) ao ver alguém falar de mérito sentado em privilégios raciais e de classe.
E por falar em mérito, há uma pergunta simples e que ainda carece de resposta: quais estudos científicos embasaram a formulação da proposta? E a criação do “college”? Quais especialistas sobre o tema da inclusão social e racial foram ouvidos na elaboração dos termos da proposta? Qual o “mérito” daqueles que formularam a proposta?
Supondo que as coisas tenham se passado como na reunião do Conselho Universitário da USP ocorrida em setembro de 2012, a ciência deve ter passado longe. Na ocasião, viu-se eminentes professores de engenharia pronunciarem-se contra as cotas, citando reportagens de revistas semanais de credibilidade duvidosa, e nos alertando para os “males” da “racialização”. Sem contar, os desgastados argumentos do mérito e dos “riscos à excelência acadêmica”.
Não que engenheiros, médicos ou biólogos não possam falar sobre políticas públicas ou sobre racismo; aliás, há alguns que obrigatoriamente devem ser ouvidos sobre certos temas, a exemplo do engenheiro e professor Henrique Cunha Junior, um dos maiores estudiosos brasileiros sobre relações raciais. A questão é essa: há que se estudar. Mas o que fica evidente é que quando o debate é sobre racismo, o privilégio branco fala mais alto do que a ciência. Todos, mesmo que nunca tenham lido um livro sobre o assunto, salvo os amplamente divulgados pelos veículos de comunicação contrários a quaisquer políticas de inclusão, acham-se no direito, mesmo dentro da universidade e na presença de colegas que estudam o tema, de pronunciar-se sobre o que desconhecem completamente. Ora, não é preconceito fazer um juízo sobre algo que desconheço? Não é preconceito partir do pressuposto de que alunos cotistas são inferiores mesmo quando a ciência diz até o contrário disso? Não é preconceito achar que só é “racialismo” quando negros falam de seus direitos e não quando brancos defendem privilégios?
Mas o que a ciência teria a nos dizer sobre as cotas e as políticas de ação afirmativa no Brasil? Além dos inúmeros livros e estudos já escritos ao longo dos últimos dez anos em que a política de cotas é adotada em cerca de 80 universidades brasileiras, pesquisas empíricas demonstram que estudantes cotistas têm desempenho igual ou superior a estudantes não cotistas. Vejam o que é a falta de racionalidade: se observamos as pesquisas, a conclusão a que se chegaria é que não seriam os cotistas que precisariam frequentar o “college”, mas sim os não-cotistas, que em geral têm desempenho igual ou até inferior aos cotistas. Pela lógica canhestra da proposta, chega-se ao nonsense e ao ridículo de se avaliar o “mérito acadêmico” antes do efetivo ingresso na academia.
A proposta do “college” também reforça aquilo que a psicologia social a partir dos estudos de Claude Steele denomina de stereotype threat[2], ou em tradução livre, “ameaça dos estereótipos”. Basicamente, este termo designa o estado psicológico de pessoas pertencentes a determinados grupos sociais discriminados que sempre são levadas a corresponder a uma expectativa negativa em torno de suas performances. A desconfiança preconceituosa em relação a certos grupos sociais faz com que seus membros sejam constantemente mal avaliados e percam a autoconfiança, abandonem os estudos, desistam de prestar vestibulares e concursos para carreiras consideradas “mais difíceis” como medicina, direito e engenharia. Partir do pressuposto de que alguém terá um baixo desempenho apenas por ser beneficiário de uma ação afirmativa é uma forma perversa de perpetuar o racismo e as demais formas de discriminação.
O “college” da proposta do Governo Paulista reafirma a ameaça dos estereótipos que paira sobre negros e outras minorias, configurando claro ataque ao princípio da dignidade humana, inscrito no artigo 1º da Constituição Federal.
O modo com que serão aplicados os critérios raciais também merece críticas. Sejamos justos: essa parte é tão equivocada quanto a Lei Federal 12.711/2012. A ideia de dividir as vagas de acordo com composição étnico-racial do Estado de São Paulo não passa de um embuste, e por um fator muito simples: o percentual de 36% de negros e indígenas apontado nos dados dos institutos de pesquisa refere-se ao total da população paulista, ao passo que as cotas serão incidentes sobre 50% das vagas. Haveria lógica na representatividade racial se os 36% fossem aplicados sobre o total de vagas e não sobre metade delas, como quer a proposta.
O que se tem de fato é “a cota da cota”, que nem de longe representa o percentual da população negra que, em São Paulo, diga-se, é a maior do País em números absolutos, segundo dados do IBGE e do SEADE. Mais sentido faria a reserva de vagas de 50% ou mais para alunos de escola pública – sem a obrigatoriedade do “college” para ingresso– e cotas raciais incidentes sobre o total das vagas. E se houvesse uma preocupação verdadeira com o nível de formação dos ingressantes, o “college” deveria ser oferecido para todos os alunos, cotistas ou não.
Enfim, a proposta de cotas do Governo Estadual Paulista é irracional, preconceituosa e não tem qualquer intenção de promover a democratização do acesso ao ensino superior. Além de instituir uma discriminação constitucionalmente inaceitável, avessa aos postulados da isonomia e da dignidade humana, a criação do “college” apoia-se na falsa premissa de que alunos cotistas têm deficiências de formação que os impediriam de acompanhar o curso.
As universidades públicas do Estado de São Paulo já perceberam que não é mais possível adiar o debate sobre a democratização do ensino e o papel das cotas nesse processo. Entretanto, o modo com que isso será feito requer um diálogo democrático e republicano que conte com a necessária participação dos movimentos sociais, algo que, pelo visto, está sendo deixado de lado pelo CRUESP e pelo Governo do Estado.
Silvio Luiz de Almeida, doutor em Direito pela USP e Presidente do Instituto Luiz Gama – SP