Por: Patrícia Toni

Os primeiros meses de 2021 trouxeram ao Brasil a frustração da continuidade da pandemia da Covid-19. Após 1 ano e 2 meses, os resultados desse período são mais de 400 mil vidas perdidas pela doença, milhões de pessoas infectadas e uma profunda crise socioeconômica que atinge, principalmente, quem mora nas periferias do país. Com apenas 15% da população vacinada até agora, o cenário é de caos, as perspectivas de melhora estão distantes e isso faz com que grande parte das organizações, entidades e coletivos que lutam por direitos sociais e bem-estar de pessoas em situação de vulnerabilidade, necessitem dedicar todos os seus esforços para combater a fome, a miséria e as desigualdades. O trabalho é urgente porque, a cada dia, os números preocupantes só aumentam.

Mais de 116 milhões de brasileiros e brasileiras não têm acesso pleno e permanente a alimentos. Dessas pessoas, 19 milhões estão em situação de insegurança alimentar grave, isto é, passando fome. Os dados são do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 que foi realizado em 2.180 domicílios nas cinco regiões do país, em áreas urbanas e rurais, entre 5 e 24 de dezembro de 2020.

A realidade do Brasil nunca esteve distante dessas estatísticas, mas é inegável a piora desse quadro nos últimos 2 anos. “Não há duvidas de que atravessamos no país, desde o período da escravidão, o nosso pior momento. Nunca se morreu tanto, em tão pouco tempo e de maneira tão concentrada. Tudo a partir do resultado das políticas de estado. Assim como nos períodos de guerra, são milhões de mortos de um lado, milhões de famintos de outro”, aponta Douglas Belchior, professor de história e fundador da Uneafro Brasil. 

Para Aline Barbosa, coordenadora do Núcleo Raquel Trindade, unidade da Uneafro em Embu das Artes, São Paulo, a pandemia só escancarou essa situação que é cotidiana nas quebradas. “Já era sabido que a população desprovida de direitos, e aqui falamos de uma maioria pretos, pobres e periféricos, sofreria muito mais. Vivemos a ausência de políticas públicas como a de seguridade social. Os trabalhadores da periferia não tiveram alternativa a não ser encarar a insalubridade dentro dos ônibus superlotados e as aglomerações para irem para o trabalho e, assim, nem puderam manter o isolamento social. Aliás, como manter o isolamento social e garantir a vida com o país mais uma vez no mapa da fome?”, questiona.

Nesse momento, o compromisso das organizações comunitárias e movimentos sociais em apoiar a população que precisa de amparo ficou ainda maior. “Enquanto movimento popular que tem um projeto político para o país, como é o caso do movimento negro, tentamos olhar para o futuro apesar da desgraça. Isso faz os movimentos dedicarem seu tempo para acudir o povo nas periferias, na favela, nos bairros onde nós moramos, para além da denúncia do governo genocida que vivemos. Convivemos no ambiente do terror, abandonado pelo Estado do ponto de vista dos direitos sociais, super ocupado por esse mesmo Estado pelo ponto de vista da repressão. Então, a gente também se obriga a enfrentar a fome”, explica Douglas Belchior.

Organizações e iniciativas práticas de enfrentamento à fome

Com o agravamento diário da crise sanitária e socioeconômica no país, iniciativas nacionais para ajudar a conter o avanço da miséria e da fome precisaram ser criadas. Desde o início da quarentena, em março de 2020, a Uneafro Brasil iniciou uma campanha de financiamento coletivo para apoiar as famílias negras e periféricas, moradoras das comunidades de São Paulo e Rio de Janeiro, onde a organização atua. Até a metade do ano passado, a iniciativa que também deu suporte a integrantes da organização, refugiados e quilombolas arrecadou quase 800 mil reais que foram revertidos em mais de 120 toneladas de alimentos em cestas básicas, cerca de 8 mil marmitas e 67 mil produtos de higiene e limpeza distribuídos. Mais de 15 mil pessoas de 41 territórios foram atendidas.

 

 

O Núcleo Uneafro XI de agosto em Poá recebendo cestas de alimentos orgânicos.

A campanha “Tem Gente com Fome” nasceu dessa necessidade e, hoje, é uma das maiores do país. Encabeçada pela Coalizão Negra Por Direitos – articulação composta por mais de 200 organizações do movimento negro brasileiro, dentre elas, a Uneafro Brasil – e mais 10 organizações de direitos humanos, ela mapeou 222.895 famílias em situação de vulnerabilidade em todas as regiões do Brasil e iniciou, em março de 2021, a campanha de arrecadação para transformar doações de qualquer valor em cestas básicas, alimentos orgânicos, itens de higiene e limpeza para essas pessoas. Depois de quase 2 meses, foram R$ 10,4 milhões em doações e mais de 50 mil famílias atendidas.

Apesar da esperança que exemplos de solidariedade como os citados há pouco trazem, a simples existência de campanhas como essa mostram o quão preocupante é a atual fase do Brasil. “Infelizmente, precisamos realizar essa campanha humanitária, isso devia ser política pública. A fome é uma das primeiras urgências que deveria ser suprida e é justamente o que não está sendo priorizado”, aponta Sheila de Carvalho, advogada de direitos humanos e integrante da Coalizão Negra Por Direitos e Uneafro Brasil.

“Na periferia, o que está prevalecendo é a autoajuda entre os mesmos. Nós por nós, sempre! Uma cesta básica para uma mãe matar a fome do seu filho tem um impacto tremendo na vida dessa família. Mas, no mês seguinte, o problema volta. É dever do Estado garantir os direitos. Ações iguais às que diversas entidades estão realizando nesse momento só reafirmam a falta de políticas públicas vivenciadas no país. São gestos simbólicos, mas que não sanam o caos que estamos mergulhados”, comenta Claudinei Correa, coordenador do Núcleo Luiza Mahim, unidade da Uneafro em São José dos Campos, interior de São Paulo.

Entrega de cestas básicas no Núcleo Luiza Mahin em  São José dos Campos.

A falta de acesso à terra para plantar, a ausência de condições para comer, de sustentar uma casa, de se proteger de doenças não é simplesmente a falta de sorte de uma grande parcela da população, segundo Douglas Belchior. Para ele, tudo é resultado de políticas de estado. “O quanto poderia ser uma surpresa o que estamos vivendo? Desigualdade social, desigualdade no acesso à educação, desigualdade ao acesso do trabalho formal e renda sempre foram marcas da sociedade brasileira. Uma vez que a sociedade tem suas necessidades básicas atendidas, logo, não há fome. Como vivemos em um país que promove ações ao contrário desse atendimento, nós temos um país com fome”.

No entanto, os objetivos da ação continuam vivos e fazem a diferença em milhares de territórios periféricos e de comunidades tradicionais. A preocupação, além de levar o alimento, é levar alimento de qualidade, com diversidade nutricional. Por isso, a campanha mobiliza coletivos de agricultura orgânica e familiar para distribuir cestas verdes com legumes, verduras e frutas para quem precisa. “Temos recebido muitas mensagens de quilombos, de pessoas que estão nas comunidades, no campo, nas comunidades urbanas e que valorizam esse alimento. Cada grão de arroz no prato, cada bocado de feijão que está chegando, as saladas formadas pelos grupos de orgânicos que estão indo junto com as cestas, tudo aquilo é valorizado. E valorizar o alimento é algo muito bonito. A gente não consegue grandes mudanças se tem fome e é isso que a campanha “Tem Gente com Fome” busca alcançar”, completa Sheila.

 

O propósito de iniciativas humanitárias como as organizadas pela Uneafro Brasil, Coalizão Negra Por Direitos e muitas outras instituições e entidades não é uma entrega aleatória de cestas básicas, sem uma construção política de conscientização sobre a gravidade do projeto político que está em curso no país. “Enquanto movimento negro, estamos há muitos anos no processo de genocídio, essa ação deliberada para eliminação da existência física de grupos nacionais, étnicos, raciais e religiosos. Estou aqui falando de conceitos jurídicos, mas o que acontece aqui enquanto projeto de nação, desde quando esse país foi fundado? Uma política de genocídio que vai sendo agravada, que vai sendo sofisticada e que vai tendo aliados cada vez mais fortes. Não é à toa que denunciamos Jair Bolsonaro, democraticamente eleito presidente da República, por um discurso genocida, que acentua as políticas de morte contra os nossos. Não é à toa que vivemos índices recordes de fome e de desigualdades, não é à toa que o Brasil é, hoje, o país que teve a pior experiência em relação à contenção da pandemia, que tem a maior população carcerária do mundo e a polícia que mais mata”, dispara Sheila. Mas, em tempos de perda de direitos e ódio, a esperança, a resistência e a solidariedade são a melhor resposta para esses ataques. “Eles não vão nos matar, não vão matar o nosso futuro, não vão matar as nossas lutas”, finaliza.

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