Dezenas de milhões de brasileiros enfrentam fome ou insegurança alimentar à medida em que a crise da Covid-19 no país se prolonga, matando milhares de pessoas todos os dias.
Voluntários distribuem sanduíches e sopas.
Por Ernesto Londoño e Flávia Milhorance
Fotografias por Victor Moriyama
Tradução: Renata Toni
23 de abril de 2021
RIO DE JANEIRO – Adolescentes magrelos seguram cartazes nos semáforos com a palavra “fome” em letras grandes. As crianças, muitas delas fora da escola há mais de um ano, imploram por comida em supermercados e restaurantes. Famílias inteiras se amontoam em barracas improvisadas nas calçadas, pedindo leite em pó para bebês, biscoitos, qualquer coisa.
As cenas, que proliferaram nos últimos meses nas ruas do Brasil, são evidências gritantes de que a aposta do presidente Jair Bolsonaro de que poderia proteger a economia do país resistindo às políticas de saúde pública destinadas a conter o vírus falhou.
Desde o início do surto, o presidente do Brasil se mostrou cético quanto ao impacto da doença e desprezou a orientação de especialistas em saúde, argumentando que os danos econômicos causados pelos lockdowns, os fechamentos de empresas e as restrições de mobilidade por eles recomendados seriam uma ameaça maior do que a pandemia para a fraca economia do país.
Esse posicionamento levou a um dos maiores índices de mortalidade do mundo e também fracassou em seu objetivo – manter o país à tona.
O vírus está destruindo o tecido social, batendo recordes dolorosos, enquanto o agravamento da crise de saúde leva as empresas à falência, aumenta o desemprego e prejudica ainda mais uma economia que cresceu pouco ou não cresceu em mais de seis anos.
No ano passado, o auxílio emergencial em dinheiro do governo ajudou a colocar comida na mesa para milhões de brasileiros – mas quando o dinheiro foi reduzido drasticamente neste ano, com uma crise da dívida se aproximando, muitas despensas ficaram vazias.
Cerca de 19 milhões de pessoas passaram fome no ano passado – quase o dobro dos 10 milhões que passaram em 2018, o ano mais recente para o qual se tem dados disponíveis, de acordo com o governo brasileiro e um estudo sobre insegurança alimentar durante a pandemia realizado por uma rede de pesquisadores brasileiros ligados ao assunto.
E cerca de 117 milhões de pessoas, ou cerca de 55 por cento da população do país, enfrentaram insegurança alimentar com acesso incerto à nutrição suficiente em 2020 – um salto em relação aos 85 milhões que estavam nessa situação dois anos atrás, mostrou o estudo.
“A forma com que o governo lidou com o vírus intensificou a pobreza e a desigualdade”, disse Douglas Belchior, fundador da UNEafro Brasil, uma das organizações que se uniram para arrecadar dinheiro para levar cestas básicas a comunidades vulneráveis. “A fome é um problema sério e intratável no Brasil”.
Luana de Souza, 32, foi uma das várias mães que fizeram fila do lado de fora de um banco de alimentos improvisado em uma tarde recente na esperança de ganhar um saco de feijão, arroz e óleo de cozinha. Seu marido trabalhava para uma empresa que organizava eventos, mas perdeu o emprego no ano passado – uma das oito milhões de pessoas que se juntaram à lista de desempregados no Brasil durante a pandemia, elevando a taxa em 14%, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
No início, a família conseguia administrar o que recebia com a ajuda do governo, disse ela, mas este ano, quando os pagamentos foram cortados, eles tiveram dificuldades.
“Não há trabalho”, disse ela. “E as contas continuam chegando”.
Fila para almoçar em frente a uma instituição de caridade católica em São Paulo. O número de pessoas que passam fome quase dobrou no Brasil recentemente.
A economia do Brasil entrou em recessão em 2014 e não havia se recuperado ainda quando a pandemia atingiu o país. Bolsonaro costumava invocar a realidade de famílias como a de Souza, que não podem se dar ao luxo de ficar em casa sem trabalhar, para argumentar que o tipo de lockdown que os governos da Europa e de outras nações ricas ordenaram para conter a propagação do vírus eram insustentáveis no Brasil.
No ano passado, quando governadores e prefeitos de todo o Brasil assinaram decretos fechando negócios não essenciais e restringindo a mobilidade, Bolsonaro chamou essas medidas de “extremas” e alertou que elas resultariam em desnutrição.
O presidente também descartou a ameaça do vírus, semeou dúvidas sobre as vacinas, as quais seu governo demorou a obter e, muitas vezes, incentivou multidões de apoiadores em eventos políticos.
Quando uma segunda onda de casos este ano levou ao colapso do sistema de saúde em várias cidades, as autoridades locais novamente impuseram uma série de medidas restritivas – e se viram em guerra com Bolsonaro.
“Temos que dar liberdade para o povo. Dar o direito do povo trabalhar”, disse ele no mês passado, afirmando que as novas medidas de quarentena impostas pelos governos locais equivalem a viver em uma “ditadura”.
No início deste mês, como o número de mortes diárias causadas pelo vírus às vezes ultrapassava 4.000, Bolsonaro reconheceu a gravidade da crise humanitária que seu país enfrenta. Mas ele não assumiu nenhuma responsabilidade e, em vez disso, culpou as autoridades locais.
“O Brasil está no limite”, disse ele, argumentando que a culpa é de “quem fechou tudo”.
Mas os economistas disseram que o argumento de que as restrições destinadas a controlar o vírus agravariam a crise econômica do Brasil era “um falso dilema”.
Em carta aberta dirigida às autoridades brasileiras no final de março, mais de 1.500 economistas e empresários pediram ao governo a imposição de medidas mais rígidas, incluindo lockdown.
“Não é razoável esperar a recuperação da atividade econômica em uma epidemia descontrolada”, escreveram os especialistas.
A economista Laura Carvalho publicou um estudo mostrando que as restrições podem ter um impacto negativo de curto prazo na saúde financeira de um país, mas que, no longo prazo, teria sido uma estratégia melhor.
“Se o Bolsonaro tivesse implementado medidas de lockdown, teríamos saído mais cedo da crise econômica”, disse Carvalho, professora da Universidade de São Paulo.
“A abordagem de Bolsonaro teve um efeito amplamente desestabilizador”, disse Thomas Conti, professor do Insper, uma escola de negócios.
“O real brasileiro foi a moeda mais desvalorizada entre todos os países em desenvolvimento”, disse Conti. “Estamos em um nível alarmante de desemprego, não há previsibilidade para o futuro do país, regras orçamentárias estão sendo violadas e a inflação cresce sem parar”.
Distribuição de cestas básicas.
O agravamento da crise da Covid-19 no país deixou Bolsonaro politicamente vulnerável. O Senado iniciou neste mês um inquérito sobre a forma como o governo está lidando com a pandemia. O estudo deve documentar erros, entre eles, a aprovação do governo de medicamentos que são ineficazes para tratar a Covid-19 e a escassez de suprimentos médicos básicos, incluindo oxigênio. Alguns desses erros são provavelmente responsabilizados por mortes evitáveis.
Creomar de Souza, analista político e fundador da consultoria Dharma Politics, em Brasília, disse que o presidente subestimou a ameaça que a pandemia representava para o país e não conseguiu traçar um plano abrangente para enfrentá-la.
“Eles pensaram que não seria algo sério e imaginaram que o sistema de saúde seria capaz de lidar com isso”, disse ele.
Souza disse que Bolsonaro sempre fez campanha e governou de forma combativa, agradando aos eleitores ao se apresentar como uma alternativa aos rivais perigosos. Sua resposta à pandemia foi consistente com esse manual de estratégia, disse ele.
“A grande perda, além do número crescente de vítimas nesta tragédia, é uma erosão da governança”, disse ele. “Estamos diante de um cenário de alta volatilidade, com muitos riscos políticos, porque o governo não cumpriu as políticas públicas”.
Organizações de defesa e direitos humanos, no início deste ano, iniciaram uma campanha chamada “Tem Gente Com Fome”, com o objetivo de arrecadar dinheiro de empresas e pessoas físicas para levar cestas básicas para a população carente em todo o país.
Belchior, um dos criadores, disse que o nome da campanha foi inspirado no poema do escritor e artista Solano Trindade. Este poema expõe cenas de miséria vistas de um trem no Rio de Janeiro que percorre bairros pobres onde o estado esteve ausente por décadas.
“As famílias estão cada vez mais implorando por entregas antecipadas de alimentos”, disse Belchior. “E eles estão dependendo mais das ações da comunidade do que do governo”.
Carine Lopes, 32, presidente de uma escola de balé comunitária em Manguinhos, um bairro de baixa renda e classe trabalhadora do Rio de Janeiro, respondeu à crise transformando sua organização em um centro de assistência improvisado.
Desde o início da pandemia, o preço dos produtos básicos aumentou dramaticamente nas lojas da região, disse ela. O custo do óleo de cozinha mais do que triplicou. Um quilo de arroz custa o dobro. À medida que a carne se tornou cada vez mais proibitiva, os churrascos ao ar livre aos domingos se tornaram uma raridade no bairro.
Acostumada a receber ligações de pais que queriam desesperadamente uma vaga para seus filhos na escola de balé, Lopes teve que se acostumar com um apelo muito diferente. Velhos conhecidos e pessoas desconhecidas mandam mensagens de texto para ela diariamente perguntando sobre as cestas básicas que a escola de balé distribui semanalmente.
“Essas mães e pais estão pensando apenas em coisas básicas agora”, disse ela. “Eles ligam e dizem:‘ Estou desempregado. Não tenho mais nada para comer esta semana. Tem algo que você possa nos dar?’”.
“Quando o vírus finalmente for embora, as famílias mais pobres terão mais dificuldade em se recuperar”, disse ela.
Lopes se desespera quando pensa nos alunos que não têm conseguido acessar as aulas online de suas casas porque não têm conexão com a internet ou onde o único aparelho com tela pertence a um familiar que trabalha.
“Ninguém poderá concorrer a uma bolsa de estudos com um aluno de classe média que conseguiu acompanhar as aulas usando sua boa internet e seus tablets”, disse ela. “A desigualdade está sendo exacerbada”.